Luís Leite Ramos

O Plano de Recuperação e Resiliência e o futuro de Trás-os-Montes e Alto Douro 

Artigo de opinião

Portugal é um país marcado por profundas assimetrias territoriais. O problema é antigo, mas tem-se acentuado nas últimas décadas, com a concentração de pessoas, empregos e atividades numa estreita faixa litoral e, sobretudo, nas áreas metropolitanas. Em 2018, quase 82% da população do continente residia a menos de 50 km da costa (558 hab/Km2). Os restantes 18% estão dispersos por uma área que representa cerca de 2/3 do território luso (41 hab/Km2). Mas as áreas metropolitanas de Lisboa (AML) e do Porto, com menos de 5% da superfície do continente, concentram 45% da população e cerca de metade das empresas e do PIB. Uma imagem eloquente das disparidades territoriais e que pode ser adensada por um sem número de indicadores, do PIB per capita (130,8 na AML contra 63,8 no Alto Tâmega) ao valor mediano do rendimento bruto anual dos portugueses (13.527€ em Oeiras contra 5370€ em Resende), do salário médio ao índice do poder de compra (219,6 em Lisboa contra 57,89 em Vinhais).
Trás-os-Montes e Alto Douro, que engloba as CIM das Terras de Trás-os-Montes, do Douro e do Alto Tâmega, ilustra bem a natureza destes contrastes e desigualdades territoriais e as inquietudes que as mesmas suscitam relativamente ao seu futuro e ao futuro do país. Apesar das transformações profundas verificadas nas últimas décadas – na melhoria das condições de vida, na infraestruturação do território, nas acessibilidades, no acesso a bens e serviços públicos essenciais e, até, na transformação das estruturas produtivas e económicas -, a região continua a debater-se com o infernal círculo vicioso das baixas densidades: um rápido esvaziamento e envelhecimento demográfico; um acentuado despovoamento de parcelas cada vez mais significativas do território; uma dificuldade crescente em assegurar níveis adequados de provisão de infraestruturas e serviços; a prevalência de uma lógica económica extrativa nos setores e atividades dominantes; a incapacidade de valorizar eficazmente os seus recursos, amenidades e atividades produtivas, gerando riqueza, valor e emprego indispensáveis à retenção e/ou atração de população, sobretudo a mais jovem e a mais qualificada.
A crise sanitária, social e económica provocada pela pandemia da COVID-19 veio demonstrar não só os custos e os riscos, presentes e futuros, deste Portugal fraturado entre o «país congestionado» das áreas metropolitanas e o «país vazio» da faixa interior, mas também o caráter central do «território» na construção de um país mais seguro, resiliente e competitivo. É por isso mesmo que o Plano de Recuperação e Resiliência (PRR), enquanto instrumento fulcral para resgatar o país da crise profunda em que vai mergulhando e cuidar do seu futuro, não pode deixar de contribuir para o reforço da coesão e da competitividade territorial.
Ora a leitura e análise da proposta de PRR apresentada pelo governo confirma, e reforça até, os maiores receios sobre os seus objetivos e a sua eficácia na construção de um país mais equilibrado e sustentável. Por um lado, regista-se a falta de uma ambição estratégica, objetiva e circunstanciada, para a recuperação económica de Portugal e de uma agenda reformista ambiciosa, focada na resolução dos seus problemas estruturais: produtividade, competitividade, qualificação, desigualdades sociais e assimetrias territoriais, etc. E, por outro lado, releva-se a ausência de uma matriz territorial para enquadrar os investimentos preconizados, ou ainda de objetivos específicos e de metas palpáveis para a coesão territorial. No PRR o território não entra, nem conta. O Interior em geral e Trás-os-Montes e Alto Douro em particular foram praticamente varridos de um plano centrado nas áreas metropolitanas de Lisboa e Porto, que só para habitação social e as redes de metropolitano levam 2187 M€, mais do que os 1989 M€ que serão investidos nas infraestruturas, florestas e gestão hídrica em todo o país. O que diz bem do lugar que a coesão territorial ocupa nas prioridades do PRR e do governo para o futuro do país. Acresce que os 662,9 milhões de euros destinados a infraestruturas, vão, na sua grande maioria, financiar a construção de estradas no litoral, cabendo a TMAD apenas dois pequenos projetos no distrito de Bragança (EN103. Vinhais / Bragança e a Ligação de Bragança a Puebla de Sanabria). Os 665 milhões atribuídos às florestas servirão para financiar a prevenção e o combate aos incêndios florestais e não a criação de riqueza ou de emprego qualificado.
Do que se sabe até agora, muito pouco dos 14 mil milhões de euros disponibilizados pela «bazuca» europeia para a recuperação do país será investido em Trás-os-Montes e Alto Douro. A ausência de regras claras e de critérios transparentes de repartição territorial prenuncia que o grosso dos investimentos públicos previstos no PRR para a construção de unidades de cuidados integrados e cuidados paliativos, de habitação social e a custos controlados, de equipamentos sociais e de ensino profissional ou de áreas de acolhimento empresarial ocorrerá nos concelhos das duas áreas metropolitanas e do litoral. Do mesmo modo, os apoios e incentivos ao investimento privado no programa de reindustrialização (930 M€), de descarbonização da Indústria (715 M€) e da transição digital das empresas (400 M€) serão canalizados para os territórios industrializados do litoral e não para a promoção do desenvolvimento económico e produtivo das regiões do interior. Nas prioridades e nas apostas do governo, o futuro do país joga-se, essencialmente, nessa pequena faixa litoral que vai de Braga a Setúbal e, mais ainda, nas duas áreas metropolitanas, consideradas a alavanca e o motor do desenvolvimento do país. Como no passado recente, e de um modo ainda mais incisivo e cruel, será nesse espaço geográfico que surgirão os desafios para a engenharia nacional e as oportunidades de emprego e de realização profissional para os engenheiros, na construção civil e obras públicas ou na informática, no ambiente ou na energia, na biotecnologia ou na mobilidade. O que contribuirá para acelerar o declínio de Trás-os-Montes e Alto Douro e de todo o interior e acentuar as assimetrias económicas ou mesmo de oportunidades e de destino, comprometendo, definitivamente, qualquer tentativa ou esperança de reequilibrar territorialmente o nosso país.
A resposta à crise social e económica é uma oportunidade única para Portugal corrigir os seus problemas estruturais e repensar o seu modelo de desenvolvimento. A preparação do país para enfrentar novas crises sanitárias ou económicas deveria conduzir a uma melhor repartição das pessoas e das atividades pelo território e a uma redução das assimetrias regionais. Nesse sentido, o PRR deveria ter um papel essencial no relançamento da economia e na desconstrução do paradigma territorial saído da globalização e que nos fazia acreditar que “fora das áreas metropolitanas não há futuro”. Mas, infelizmente, assim não é. O PRR é mais do mesmo e, portanto, os resultados esperados não podem ser muito diferentes daqueles que conhecemos: um território cada mais enquistado em torno de dois ou três nódulos capitais; um país cada vez mais desigual e injusto. Será este o Portugal que queremos continuar a ter em 2030?
 
Leia também a entrevista de Jorge Nogueiro Gomes Aqui