[Com vídeo] Daniel Bessa “Se eu fosse engenheiro, não estaria com muito medo!”

O economista Daniel Bessa foi o convidado de mais uma edição do “Há Engenharia fora da Caixa” e traçou-nos o cenário económico, partilhou opiniões e confessou: “Eu conheço as projeções e admito que sejam melhores do que aquilo que estávamos a recear”, mas deixa claro que “Se Portugal estivesse fora desse circuito (Europeu), seria uma catástrofe.”

 
Poças Martins, presidente da Ordem dos Engenheiros – Região Norte a quem coube a condução desta conferência, lembrou que o convidado é “respeitado e que a sua opinião é muito ouvida de Norte a Sul. Conhece a economia portuguesa como poucos.”
Como não engenheiro insere-se perfeitamente nesta lógica da Engenharia fora da caixa, mas para além disso tem uma componente que é, hoje em dia, vital, a componente económica, extremamente importante para tudo aquilo que vai acontecer.
Lembrou ainda que “Não perguntamos ao Daniel Bessa o que vai acontecer, como não pedimos a ninguém, ninguém tem a bola de cristal, mas há opiniões que são mais educated guess do que outras e, certamente a do Daniel Bessa é very well educated (risos).”
Antes de passar a palavra ao convidado, Poças Martins fez um enquadramento da atualidade: “Há várias dúvidas se haverá uma nova vaga desta pandemia ou não, não sabemos bem o que se vai passar no próximo ano, temos todos uma certeza, se houver um novo confinamento geral a situação pode ser devastadora e recordo-me que quando essa questão foi colocada ao Mira Amaral ele esperou uns segundos para responder e disse simplesmente “isso seria o fim da macacada”.

“O consumo de água é um bom indicador da atividade económica.”

 
Por isso Poças Martins foi um pouco mais “cirúrgico” e deu um exemplo: “Sendo eu do setor da água, procurei uma informação junto de entidades gestoras de água à volta do Porto. O consumo de água é um bom indicador da atividade económica.” E continuou “no Porto, por exemplo, aconteceu que se gastava 60 mil m3 de água por dia e passou a gastar-se só 50 mil, ou seja, houve uma redução de consumo de água de cerca de 20%. O consumo doméstico aumentou 10% numa primeira fase e mais tarde 5%, o que quer dizer que o consumo não doméstico terá baixado bem mais que 20%.”

“Em que medida é que isto pode estar relacionado com a atividade económica? Depende, parte disso será a atividade turística. Mas a nível regional globalmente, houve um maior consumo de água doméstica e uma redução no consumo de água não doméstico.”
 

O que Daniel Bessa disse

 

 Sobre a Macroeconomia

O que nos aconteceu está à vista. Aconteceu-nos um problema de saúde pública que teve implicações bastante maiores que o costume, porque a sociedade e a política evoluíram, a vida ganhou outro valor e, portanto, os grandes países e mesmo os menos desenvolvidos tomaram a decisão de nos colocar em casa e isso é novo.

“Podemos não morrer da doença, mas se for um descalabro do ponto de vista económico, algumas pessoas poderão morrer.”

Portanto isso gerou um receio imenso do ponto de vista económico. Quanto é que a economia irá cair? O que nos vai acontecer? Podemos não morrer da doença, mas se for um descalabro do ponto de vista económico algumas pessoas poderão morrer. Portanto essa foi a grande questão de início toda a gente muito timorata, com dificuldade em avançar com números, depois os números foram-se sucedendo e em geral, cada vez mais negativos.
Eu não alinhei muito com esse exercício porque me parecia que havia aqui uma grande incógnita. E foi por isso que me apeguei muito ao número que foi lançado pelo ex-ministro Mário Centeno numa entrevista televisiva, em que referiu que a economia cairia 6,5% por cada 30 dias úteis que estivesse parada. Em vez de ter aqui uma previsão de queda de PIB, tinha uma noção de perda por dia parado.

“O ano tem cerca de 290 dias úteis e, portanto, fazendo as contas

isto daria uma queda do PIB de 52% se a economia

se mantivesse parada durante um ano.”

É preciso não esquecer que no PIB há o contributo da economia pública e da economia privada, portanto as escolas, os hospitais, os bombeiros, a polícia, o exército, enfim os serviços públicos. E está convencionado que a parte do setor público administrativo seja contabilizado para efeitos de PIB pelos salários.  Portanto não estando estes em risco, tinha aqui uma componente do PIB que não estava em queda (o que representa cerca de 10%) e depois tinha 90% em queda, que segundo o que disse anteriormente poderia chegar a cerca de 52%. Ora este valor, para a economia privada representaria uma queda de 57,5% caso estivesse parada durante um ano.
Estes números pareceram-me entendíveis, não envolviam muita especulação e ficaríamos assim à espera de saber quantos dias a paragem iria durar. Julgo que durou cerca de 28 dias úteis essa primeira fase e entramos na segunda fase que é a do término do Estado de Emergência e recomeço de alguma atividade.

“É impensável que a segunda vaga dê lugar ao mesmo confinamento.”

Aqui há a questão da segunda vaga, mas penso que é impensável que essa segunda vaga dê lugar ao mesmo confinamento. Se acontecer, as pessoas já estarão mais preparadas, o Sistema Nacional de Saúde robusteceu-se e, portanto, a economia não pararia como da primeira vez.
Mas deixando esta questão de lado a pergunta que se mantém pendente é o que se vai passar à medida que se for processando a reabertura. Portanto sabemos que há setores muito difíceis, como a hotelaria (sobretudo num país que depende muito de cliente de um mercado externo), o turismo, a aviação. Mas estes são casos de limite, a grande dúvida era saber o que se ia passar nomeadamente com o consumo quando as pessoas regressassem.

“O Governo neste momento está do lado mais otimista.

As previsões iniciais não eram tão negativas.”

Esta é efetivamente a grande incógnita e eu fiquei muito influenciado por um estudo, apresentado por Paulo Portas, feito em vários países em que era perguntado em que é que as pessoas iriam gastar o dinheiro quando voltassem a sair e a resposta é muito esclarecedora porque, a primeira prioridade em todos os países era poupança. A segunda prioridade era a saúde, seguros de saúde, enfim os bens essenciais e, no fim da escala, nem pensar em turismo, em viagens, e em coisas desse género. Quando os macroeconomistas fazem previsão de PIB dizem logo quais são as previsões de consumo, de exportações, de investimento. E realmente a variação das previsões do PIB estavam ligadas à variação das previsões sobre o comportamento do consumo. Depois apareceram as previsões que faltavam, a do BCE que aponta para a área do Euro para uma queda de 8 a 12%, colocando Portugal e a Grécia nos piores casos (por causa do turismo) e a previsão da OCDE que uma queda de 9,4% para a hipótese de não haver segunda vaga.
Como sabemos o Governo está nos 6,9%. O Governo neste momento está do lado mais otimista. As previsões iniciais não eram tão negativas, mas as que temos no momento são estas.
 

Sobre o consumo

Secundando a informação que o Poças Martins trouxe sobre a água, eu estou profissionalmente ligado a uma grande empresa na área do gás. Os números que me surgiram daí, relativos ao mês de abril, apontam para uma queda de 24% em comparação com os valores do mesmo período de 2019.
Cerca de 20% do consumo de gás é doméstico e aí não terá havido queda. Portanto 80% do consumo refere-se à indústria, a hotelaria, a restauração. Significa, portanto, que esta última área terá caído cerca de 30%. Este é um número muito animador, é muito melhor do que a previsão da empresa que em abril ia de 50 a 60 %. E é talvez o número mais positivo que ouvi em tudo isto.

“Aparentemente não serão tomadas, pelo menos para já,

 nenhumas medidas de restrição de combate ao défice”

Claro que também há aqui um dado muito importante que são as medidas que foram tomadas a nível Europeu, primeiro pelo BCE e depois pela Comissão e esses números realmente sugerem que o Estado português está autorizado a um aumento brutal de défice, aparentemente não serão tomadas, pelo menos para já, nenhumas medidas de restrição de combate ao défice. E, portanto, deste ponto de vista o Estado não amplificará a crise nos meses que estão mais próximos. O mesmo se passa com a banca, mas as moratórias para empresas e particulares, que a colocaram numa posição de bastante tranquilidade, pelo menos até março de 2021, depois logo veremos, será de esperar uma dificuldade extrema neste setor.
 
 

Sobre a Microeconomia

Cada caso é um caso, mas há, no entanto, implicações que acho que neste momento são óbvias.
Uma delas é o teletrabalho, penso que neste momento é claríssimo que não haverá um regresso à situação que se tinha anteriormente, nomeadamente na área administrativa. Centenas de pessoas no mesmo espaço a trabalhar em frente ao computador provavelmente não voltará a acontecer. 

“No caso do ensino (…) nos graus mais baixos,

no ensino básico e pré-primário, a experiência é um desastre”

No caso do ensino nos níveis mais altos o trabalho à distância foi passando, apesar de haver situações em que os alunos afirmam que não compraram apenas conteúdo, mas sim experiência e a interação com os professores e colegas e neste caso nada disso aconteceu. Nos graus mais baixos, no ensino básico e pré-primário, a experiência é um desastre. Tem sido muito discutido o problema da desigualdade, mas além desta questão importante, a maior é que as crianças não vão para a escola para aprender conteúdos, mas sim para conviverem umas com as outras e aqui, não faz sentido nenhum, qualquer evolução que privilegie o trabalho à distância.

“Na área da microeconomia há uma grande incógnita,

que são as cadeias de abastecimento.”

É um bocadinho diferente do tema das viagens nas empresas, porque aí uma pessoa não passa os 240 dias úteis do ano em viagens, viaja de vez em quando, uns mais, outros menos. Aí estou convencido de que, tudo o que seja reuniões, vai ser impensável fazer uma viagem por duas horas de reunião.

“Se falarmos em roupa, calçado ou de automóveis,

já não estou tão certo de que vá haver o regresso da indústria à Europa”

Na área da microeconomia há uma grande incógnita, que são as cadeias de abastecimento. Também nos Estados Unidos, mas nomeadamente na Europa, houve uma deslocalização de partes importantíssimas da cadeia de produção, para geografias de mão de obra mais barata e, em geral, de custos mais baixos. Isso implica algumas fragilidades, sobretudo por questões de segurança, nomeadamente, na área da saúde, leia-se um medicamento, e haja algum retrocesso. Mas se formos falar em roupa, calçado ou de automóveis, já não estou tão certo de que vá haver o regresso da indústria à Europa.
Eu acho que foram as grandes empresas europeias, que promoveram a deslocalização e mais do que isso, que comandaram a política, a intervenção dos estados, na Organização Mundial do Comércio, isso foi promovido, ativamente, estrategicamente, pela grande indústria e pela grande distribuição europeia, e foi por razões de custo. Eu esperaria para ver, com exceção de temas que tocam mais a segurança, como os medicamentos, os dispositivos médicos, aí talvez haja algum retrocesso na globalização, na internacionalização das cadeias de abastecimento.
 

Sobre quem vai pagar

O dinheiro tem aumentado um pouco por todo o mundo, mas não é gasto e não tem havido implicações de inflação. Portanto eu acho que no que se refere à componente monetária, o Banco Central Europeu alargou os “Cordões à Bolsa”, os estados que tiveram acesso ao dinheiro vão-no gastar, as pessoas vão comprar com esse dinheiro, e quem o recebe, não o gasta, fica com ele, e portanto temos aqui uma espécie de interregno e em rigor, enquanto os preços não subirem, não há pagamento. Mantendo-se o poder de compra, têm aqui uma espécie de crédito sobre o futuro. Mas isto tem limites, noutros tempos e noutros países não terá tido, como a Alemanha.

“Não sei muito bem, julgo que serão os estados a cobrar,

mas a receita será para entregar à União Europeia.”

Estão três grandes alternativas em aberto, uma é o aumento da contribuição dos estados, que está em cerca de 1% do PIB, pagariam mais nos próximos ciclos orçamentais, outra hipótese é reduzir do lado da despesa, o Fundo Social Europeu, o FEDER, o Fundo Agrícola, essas coisas, contariam com menos dinheiro para pagar a dívida e a terceira, que eu acho que é talvez a que tem mais hipóteses, é a de alguns impostos europeus.

“Se Portugal estivesse fora desse circuito (Europeu), seria uma catástrofe.”

Portanto não sei muito bem, julgo que serão os estados a cobrar, mas a receita será para entregar à União Europeia. Mas para Portugal é literalmente uma bênção, porque se Portugal estivesse fora desse circuito, seria uma catástrofe.  Eu penso que nesta primeira fase, do que se trata é de sustentar. A partir da fase seguinte, há grandes incógnitas. Eu acho que há muitas empresas que não têm condições de subsistência. Nos negócios mais pequenos, não havendo “dinheiro fresco” alguma coisa que tenha de fechar, feche. Nos negócios maiores, não sei se será bem assim, porque mesmo em fase moratória, não havendo “dinheiro fresco” e a empresa fechar ou falir, os bancos tem de meter isso nas contas e não sei se isso será muito fácil até março de 2021. A fase de recuperação, tem de ter um mínimo de seletividade.
 

Sobre as exportações, empresas e bancos

Eu acho que a dúvida maior está ligada ao consumo, todas as indústrias de consumo, sobretudo o consumo não essencial, estão em grandes dificuldades, como o do setor automóvel, a nível europeu. Portugal tem, e bem felizmente, muita indústria de componentes e isso é muito complicado, mesmo na área da aviação. Eu acho que as reservas e as dúvidas maiores estão nas indústrias ligadas ao consumo menos essencial, que não está ligado nem à alimentação nem à saúde. Se estiver a falar de bens de equipamento, de eletrónica, de serviços na área das novas tecnologias, essas atividades é de esperar aumentos de procura.

Sobre o papel da Engenharia Portuguesa na retoma

A Engenharia é um ativo do país, portanto, a mão de obra qualificada, os custos internos relativamente baixos, a segurança, o clima, a hospitalidade, não vejo razão nenhuma para que isso retroceda. Eu se fosse Engenheiro, não estaria com muito medo.

Sobre a energia

É evidente que haverá investimentos, haverá o tema dos custos, haverá o problema dos preços a que essas energias vão ser adquiridas, mas eu penso que exceção feita a situações limite, de produção muito muito cara na Europa. Se o plano de recuperação europeu for para a frente, eu acho que essa vai ser uma área prioritária, tudo o que tenha que ver com energia, com conservação da natureza, com proteção ambiental, com digital, eu acho que isso vai ser prioritário. Se fosse sobretudo no sentido de levar isso aos utilizadores, era muito importante que toda a indústria e os serviços portugueses caminhassem nesse sentido. O hidrogénio parece ser um dos temas de topo da agenda europeia, mas não é sobre quem vai utilizar o hidrogénio para se tornar mais clean e mais verde, mais seguro e mais barato, é sobre quem é que o vai produzir.

Sobre o futuro

Se há coisa que vai crescer, sobretudo com esta abordagem, é dívida. Do ponto de vista dos impactos imediatos, eu acho que a coisa está melhor do que eu podia esperar, os números da água, enfim, são o que são, os números do gás, têm mais indústria, acho eu, mas também são o que são, mas são mais positivos do que se receava. Eu conheço as projeções, eu admito que sejam melhores do que aquilo que estávamos a recear. Agora, uma queda de 10% do PIB eu acho não está fora de questão para 2020, mesmo sem novo surto. As contas do Mário Centeno, se a situação se prolongasse durante um ano, eram 52%, era impensável. Contudo, isto é muito subjetivo.
 

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Edição e texto: Catarina Soutinho | Transcrição: Sofia Vieira e Inês Miranda | Design Gráfico: Melissa Costa

 

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