Grandes Entrevistas de Engenharia com… Marisa Ferreira

Marisa Ferreira é a primeira mulher a receber Prémio Secil de Engenharia, pela autoria do projeto do Terminal de Cruzeiros de Lisboa. Em entrevista à OERN conta-nos o seu percurso e o que significa este prémio.

PERFIL MARISA FERREIRA

Formação: Mestrado em Engenheira Civil | Universidade do Minho

Função atual: Direção, Coordenação e Gestora de Projetos | Afaconsult

Outras funções/cargos:
– Direção e Coordenação de Projetos | Fase-Estudos e Projectos SA
Responsável pelo Departamento de Fundações e Estruturas
– Chefe de Projeto de Fundações e Estruturas, Engenheiro de Projeto
de Fundações e Estruturas | Fase-Estudos e Projectos SA
– Colaboradora da CMM | Associação Portuguesa de Construção Metálica e Mista

Muitos só agora a conhecem na sequência do prémio Secil. Mas para quem não a conhece quem é Marisa Ferreira?

Nasci em São João da Madeira, e sou licenciada, em 1998, na Universidade do Minho, em Engenharia Civil na opção de Estruturas. No último ano da licenciatura realizei a tese de especialidade em betão estrutural e pré-esforçado na Universidade Politécnica da Catalunha, em Barcelona, Espanha. Terminada a licenciatura, ingressei de mediato no Mestrado em Engenharia Civil, enquanto colaborava na CMM – Associação Portuguesa de Construção Metálica e Mista. A minha dissertação de mestrado intitula-se Passadiços pré-fabricados de betão. Concepção e Projeto.

Em 1999 decidi abraçar o projeto e ingressei na Fase-Estudos e Projectos SA no departamento de Fundações e Estruturas como projetista. Durante essa experiência tive a sorte de colaborar num conjunto de projetos variados, desde obras de arte (viadutos, passadiços, etc), edificios (habitação, comerciais, hospitalares), unidades industriais e no desenvolvimento de vias rodoviárias e ferroviárias. Comecei como projetista e assumi o papel de Chefe de Projeto de equipa passado quatro anos. Em 2007 fui convidada a integrar a Coordenação de Projeto de uma grande Unidade Industrial, cujo projeto obrigava a um consórcio composto por 3 grandes gabinetes da zona Norte e equipas de Engenharia Industrial Portuguesas e estrangeiras.

O edifício do Terminal de Cruzeiros de Lisboa foi um presente desafiante.”

E isso foi um grande desafio?

Sim, porque permitiu alargar os meus conhecimentos a outras áreas, levando-me a sair da minha zona de conforto. Foi assim que iniciei o meu trabalho na Coordenação de Projetos, que acumulava como Projetista, uma vez que nunca quis deixar de projetar. Nos últimos anos na Fase, convidaram-me para ficar como responsável de Competência Técnica de Fundações e Estruturas, passando também a liderar a equipa de engenharia, desenhadores e medidores desta área, situação que aceitei até ter saído da empresa. Em 2020, integro a Afaconsult, onde fui muito bem recebida, e onde sou hoje responsável pela equipa de Coordenação e Gestão de Projetos. Na Afaconsult assumo o papel de gestão de produção dos projetos. Procuro coordenar todas as especialidades com a Arquitetura e com as pretensões do Cliente, sempre na busca de um projeto integrado. Tenho tido a oportunidade em colaborar com os mais prestigiados Arquitetos Portugueses e Estrangeiros, o que é muito gratificante, mas também muito desafiante, numa procura constante de novas soluções.

O que podemos saber sobre a obra pela qual foi premiada?

O edifício do Terminal de Cruzeiros de Lisboa foi um presente desafiante. O objetivo principal era desenvolver um projeto que respeitasse na íntegra a pretensão que o Arquiteto João Luís Carrilho de Graça pretendia para o local, cumprindo o programa definido respeitando a envolvente sem deixar de se afirmar na cidade. O Arq.º Carrilho da Graça teve a arte de fazer isso. A visão dele para o local foi única. O edifício do Terminal de Cruzeiros de Lisboa está implantado no interior da Doca do Jardim do Tabaco que resultou em vários condicionamentos diretos, quer ao nível do projeto de Arquitetura quer no projeto de Estruturas.



“A estrutura do edifício, o seu comportamento sísmico e o tipo de solo em profundidade, levou à necessidade em utilizar fundações especiais com profundidades da ordem dos 25-30 metros.”

Foi preciso conciliar vários aspetos, portanto

A solução estrutural proposta para o Edifício do Terminal de Cruzeiros de Lisboa procurou conciliar aspetos funcionais e de cariz arquitetónico com os requisitos estruturais. A durabilidade e o plano de manutenção do edifício foram analisados e desenvolvidos considerando também os custos dos materiais e das soluções construtivas propostas. A conceção estrutural do edifício foi fortemente condicionada pelas condições geológico-geotécnicas do local e pelas condições resultantes da intervenção e aterro da Doca do Jardim do Tabaco. O edifício constituído por 4 pisos, sendo um deles abaixo da cota da maré (piso -1), representava um aumento de cargas no solo que levou à necessidade, em conjunto com a equipa de Arquitetura, de estudos tendo em vista a diminuição das cargas nas fundações. Respeitando a métrica de vãos prevista pela Arquitetura, 8×8 m2, e a distribuição dos elementos verticais necessários para a estabilidade lateral da estrutura sob ação sísmica, procurou-se uma solução aligeirada ao nível do material. Para tal recorreu-se a um betão estrutural leve de forma a reduzir o peso da estrutura do edifício sem comprometer a sua resistência. Ainda assim, a estrutura do edifício, o seu comportamento sísmico e o tipo de solo em profundidade, levou à necessidade em utilizar fundações especiais com profundidades da ordem dos 25-30 metros. A execução destas fundações foi muito exigente, de risco até, por causa dos condicionamentos construtivos (metodologia de execução, marés, etc.).

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Foto: Victor Sousa

O betão branco estrutural leve com aglomerado de cortiça natural reciclada utilizado satisfazia todos os requisitos de projeto, quer em termos de resistência mecânica e massa volúmica do betão, quer em termos de qualidade de acabamento, isolamento e durabilidade. O betão branco com cortiça utilizado cumpre a resistência pretendida, mas cerca de 40% mais leve que um betão convencional, com a vantagem adicional de representar uma solução mais sustentável com menores impactos ambientais. A ideia deste betão foi iniciativa do Arq.º João Luis Carrilho da Graça que contou ainda com a colaboração da Secil, do Grupo Amorim e do Itecons.

O caderno de encargos do projeto lançado a concurso foi muito exigente para este produto, uma vez que foram colocados requisitos ao nível dos materiais e dos processos construtivos, exigindo a produção de vários protótipos até à obtenção da composição pretendida. Todo este processo teve o acompanhado dessas equipas, mas também das equipas em obra, Empreiteiro e Fiscalização/Coordenação de Obra. A execução das fachadas com betão leve estrutural branco foi um ponto alto desta obra.

É com imenso orgulho que enquanto Engenheira e Mulher, recebo este prestigiado prémio tido como a maior referência no campo da Engenharia Civil em Portugal. Recebo-o em nome do trabalho de equipa do departamento de Estruturas da empresa Fase-Estudos e Projectos SA.

O Edificio do Terminal de Cruzeiros apresenta ainda outras particularidades, como a transparência pretendida nos alçados Sudoeste e Nordeste conseguida através de pórticos em betão armado pré-esforçado com vãos da ordem dos 40metros. Ou ainda, o facto do edifício estar localizado na antiga Doca do Jardim do Tabaco, sujeito às mares do rio Tejo, exigiu adotar um sistema adequado de impermeabilização que garantisse a estanquidade de todo o edificio ao longo dos anos. Por outro lado, toda a zona envolvente ao edificio, desde o parque de estacionamento, ao espelho de água, à integração das Antigas muralhas no projeto, foram soluções cuidadosamente estudadas para que fosse respeitada a Arquitetura e a Arquitetura Paisagista.

É a primeira mulher em 30 anos a receber o prémio Secil, reconhecido como o prémio referência de engenharia civil em Portugal. O que significa para si e para as mulheres?

É com imenso orgulho que enquanto Engenheira e Mulher, recebo este prestigiado prémio tido como a maior referência no campo da Engenharia Civil em Portugal. Recebo-o em nome do trabalho de equipa do departamento de Estruturas da empresa Fase-Estudos e Projectos SA. Destaco a orientação, o apoio e o profissionalismo do Prof.º Nelson Vila Pouca, a competência e dedicação do Eng.º Nuno Pinheiro, a coordenação e colaboração do Eng.º Adriano Cardoso, assim como o empenho dos restantes colegas que colaboraram ao longo das várias fases do projeto. Foram muitos meses.

Ser a primeira Engenheira a vencer o Prémio Secil é sem dúvida, marcante. No entanto, as circunstâncias são também especiais, o edifício é especial e particular. Não tenho dúvidas que foi a colaboração entre a Arquitetura e a Engenharia que fez sobressair o edifício tornando mais fácil arrecadar o prémio.

A presença e o papel das mulheres na Engenharia é inegável que se tem acentuado nos últimos anos. Há muitas outras Engenheiras com trabalhos de mérito.

Só valorizando o que fazemos, conseguiremos que outros nos reconheçam o devido valor.

Como vê a Engenharia que se faz em Portugal, na sua área em concreto. Consegue identificar o melhor e o pior?

Em Portugal há excelentes técnicos na área de Engenharia Civil com grandes exemplos na área de estruturas. A Engenharia Portuguesa é sem dúvida de grande qualidade. As inúmeras obras de Engenharia no nosso país assim o comprovam. E o reconhecimento internacional é evidente. Só assim se explicam os inúmeros convites e trabalhos que a nossa Engenharia empreende em todo o mundo. Penso que o momento é de promover o mérito. E há muitos exemplos de mérito na Engenharia Portuguesa. Uma prova é a longevidade, os 30 anos, do Prémio Secil.

Sendo Engenheira, qual acha que deve ser o papel da Ordem na vida dos Engenheiros.  

A Ordem dos Engenheiros é a nossa ordem profissional que deve, acima de tudo, promover e valorizar a Engenharia Portuguesa. É importante divulgar o que melhor a nossa Engenharia faz aqui e em todo o mundo. A Ordem tem tido um papel fundamental na comunicação. Só valorizando o que fazemos, conseguiremos que outros nos reconheçam o devido valor. Por exemplo, na minha opinião, a Ordem podia ter um papel mais ativo junto dos Donos de Obra, sensibilizando-os para o valor fundamental dos atos de engenharia. Infelizmente, alguns donos de obra, veem ainda a Engenharia como uma despesa e não como um investimento.

Na Região Norte, temos um claim que é “Há futuro onde há Engenheiros”? Concorda? Comente.

Sinceramente, espero bem que sim. A Engenharia tem que ser vista como uma profissão de futuro, com um papel fundamental na sociedade que contribui para o seu desenvolvimento. Nós, Engenheiros, devemos desmitificar a imagem limitada que erradamente alguns têm de nós, de técnicos de obras. Na verdade, somos técnicos a quem devia ser atribuído um papel mais ativo e participativo em decisões políticas, de planeamento e de gestão.

foto capa: João Fitas e Vítor Sousa

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