Mário Augusto: “A essência do Cinema é a Engenharia”

Engenharia, câmaras: ação! E foi mais ou menos assim que Mário Augusto, jornalista da RTP e também um dos mais reconhecidos jornalistas de cinema em Portugal, nos levou por uma incrível viagem pelo cinema de ontem, de hoje e de amanhã, sem nunca perder a engrenagem da Engenharia.
Há Engenharia no cinema, “a essência do cinema é Engenharia” afirma Mário Augusto, mas lembra que “tem de ter história”, se não tiver, o filme não é mais que uma sucessão de imagens. Mário Augusto encantou os muitos que escolherem passar mais um final de tarde com a OERN no “Há Engenharia Fora da Caixa”. Reveja esta sessão no vídeo no fim da página.
Poças Martins, presidente da Ordem dos Engenheiros – Região Norte (OERN) foi quem deu o teaser desta conferência, lembrando que “continuamos nesta Engenharia fora da caixa a ouvir pessoas que nos ajudam a perspetivar o futuro e não é altura para entrarmos em pormenores ainda, mas, deixem-me compartilhar, que eu sinto-me quase a ver dois filmes, um chama-se a “Pandemia do medo” e outro a “Solução do problema errado”. Sinto que estamos a resolver o problema errado, mas falaremos disso mais tarde.” E concluiu afirmando que “ o cinema foi um pretexto para convidarmos uma pessoa culta e interessantíssima, que também fala de cinema: o Mário Augusto. “
A Joaquim Borges Gouveia, do Conselho Diretivo da OERN coube mais uma vez a moderação desta conferência, colocando a Mário Augusto algumas perguntas dos participantes.
 
 

O que Mário Augusto disse

 

No início eram só imagens…

Esperemos que tudo volte ao normal, mas será seguramente um “novo normal”, porque é isso que o mundo é também, redondo e sempre a mudar e andamos sempre em movimento. 
 

“Quando falo da criatividade é no verdadeiro sentido da palavra

mesmo quando se fala da técnica, aliás, na verdade,

a essência do cinema é Engenharia.”

 

Eu costumo dizer que o cinema é erradamente considerado a sétima arte. No meu entender o cinema é de todas as artes aquela que não é uma arte única, depende de uma série de artes, ou seja, não pode viver sem a fotografia, sem o teatro e a representação, sem a pintura, sem a criação dos cenários, sem a música. E isso faz com que quando um crítico italiano, no início do século XX, referiu que era a sétima arte foi só para a catalogar.
Na verdade, a essência do cinema é Engenharia, depois tem de ter história, aliás o Godard diz “o filme não é mais que uma história com princípio, meio e fim”, mas se não tivesse por trás toda uma Engenharia e um desenvolvimento do produto que permite contar as histórias, ainda hoje estaríamos na pré-história do cinema. Este ano, curiosamente, o cinema faz 125 anos, foi a 28 de dezembro de 1895, em Paris, que decorreu a primeira sessão de cinema.
É um exercício engraçado, pensarmos qual seria a sensação dos irmãos Lumière ou mesmo do próprio Méliès se vissem como é o cinema atualmente e percebessem aquilo que se fez com uma tecnologia que eles próprios criaram, ou ajudaram a desenvolver!
 

 
Por uma questão histórica é mais fácil dizermos que quem começou o cinema foram os irmãos Lumière, mas faltava-lhes um lado do engenho artístico. Quando estes irmãos começaram o cinema, já se faziam experiências e até negócio através do engenho do Edison (ver mais no vídeo). Mas os irmãos Lumière foram mais artísticos e mais cuidadosos no desenvolvimento da sua tecnologia, porque há aqui evoluções tecnológicas diferentes na evolução desse período.

“Os irmãos Lumière, ao ver a invenção

de Edison, começaram com as experiências

para a projeção. Portanto aqui estamos a falar

de tecnologia,  de Engenharia de produto.”

 
No caso do Edison tudo começa por causa de um fotógrafo que criou a decomposição do movimento (ver vídeo), que o desafiou a juntar as imagens em movimento como a sua tecnologia de som (o fonógrafo). Ele começa por fazer estudos em laboratório, mas nessa altura ainda não havia projeção e então o que eles conseguiam fazer era mostrar imagens em sequência e isoladas. No caso dos irmãos Lumière, ao ver a invenção de Edison, começaram com as experiências para a projeção. Portanto aqui estamos a falar de tecnologia, de Engenharia de produto.
 

Sobre a transformação digital

Eu respeito muito a tecnologia do cinema, acho incrível. Para quem gosta muito de cinema olhar para um clássico é fantástico, ver um filme que é uma câmara, atores, luz e cenário é maravilhoso. 

“Quando olhamos para um filme mais tecnológico, como o Avatar

e não conseguimos decifrar onde arranca a criatividade do realizador

e onde pega o engenheiro Informático aquilo é um nó cego que nos dá.”

 
Porque muitos dos realizadores que trabalham nessa área só sabem defender uma ideia. Depois há um batalhão de informáticos, de técnicos, de especialistas em determinadas áreas do digital que dão forma à criatividade. Só que sozinhos não fazem nada, porque cinema é história e, uma história precisa de magia e sentimento.
O fenómeno que nós estamos a viver atualmente na transformação do cinema, é precisamente igual e está decalcado da transição do mudo para o sonoro.  Há menos de 20 anos, as nossas televisões eram uns caixotes pretos grandes, que nós tínhamos na sala, num móvel próprio para aquilo. Hoje são uns ecrãs flat. Há 15 anos tínhamos televisões HD, depois o 2k, depois o 4k, hoje já há o 10k.
 

“As pessoas começaram a perceber que o 3D era uma treta (…)

O que se entende como 3D, vai ser conseguido,

em meia dúzia de anos, com a definição da imagem.”

 
Reparem neste pormenor, andaram a ganhar dinheiro com os 3D, que era uma falsa ilusão, porque não era 3D nativo, era 3D de algoritmo, era processado no computador e as pessoas começaram a perceber que aquilo era uma treta. Vai-se recuperar com o Avatar outra vez, em 2021, mas nunca vai ter a força que teve há 2 ou 3 anos, porque o que se entende como 3D, vai ser conseguido, no prazo curto de meia dúzia de anos, com a definição da imagem.
 

 

Sobre a evolução do cinema

O cinema evoluiu tanto nestes anos devido ao engenho de muita gente, eu acho que se quisermos refletir um bocadinho sobre esta evolução, prova-se aqui uma coisa incrível, que é que ninguém faz nada sozinho e, o cinema é por si só a arte, ou o engenho, ou a disciplina que representa o verdadeiro trabalho de equipa. Em todas as áreas ninguém faz nada sozinho.
 

“Ninguém faz nada sozinho e, o cinema é por si só a arte,

ou o engenho, ou a disciplina que representa

o verdadeiro trabalho de equipa.”

 
Há exemplos de realizadores muito bem-sucedidos, atualmente, como o Martin Scorsese que teve sempre, em todos os filmes, a Thelma Schoonmaker como editora dos seus filmes e o Steven Spielberg que tem 15 pessoas na sua equipa que são sempre as mesmas, incluindo o editor que tem já 84 anos (ver mais no vídeo).
 

Sobre o cinema português

O período dourado do cinema português, é do ponto de vista cinematográfico, muito pobre. É bom na representação, é bom naqueles grandes atores de cinema, António Silva, Vasco Santana, a Beatriz Costa. Do ponto de vista da produção, aquilo é pobre, é quase telenovela num espaço fechado nos estúdios e pouco mais.
 

 
A única pena que eu tenho é que nós portugueses que somos tão reconhecidos em muitas coisas nunca tenhamos sabido tirar partido desta arte, apesar de termos imensos portugueses a trabalhar nas várias áreas.

Sobre o “caso” dos engenheiros da Pixar

O caso mais paradigmático que posso contar é que quando foi criada a Pixar ela era uma software house de desenvolvimento de software gráfico. Depois o Steve Jobs compra a Pixar e precisaram de potenciar o mono-produto e para isso foram buscar o John Lasseter.

O John Lasseter, que tinha formação de realização de animação na Disney,

desafiou os engenheiros de sistema a criarem novas soluções. (…)

 aí que nasce o Toy Story.

 
A dada altura a Pixar começa a fornecer à Disney soluções tecnológicas complexas para os filmes de animação, como por exemplo a Bela e o Monstro, em que toda a cena da dança entre os protagonistas tem processamento digital e algoritmos do computador. E depois é John Lasseter quem desafia a Pixar a fazer um filme próprio e é aí que nasce o Toy Story.
 

 
 

Sobre filmes para Engenheiros

Há vários filmes sobre Engenharia. Mas há um filme que tem cabeça de Engenheiro. Há um realizador que eu acho que tem cabeça de engenheiro e consegue juntar isso ao lado artístico de uma maneira incrível, como nenhum outro consegue que é o Christopher Nolan.

“O “2001 Odisseia no Espaço” é um filme que tem muita Engenheira,

que tem ali um lado tecnológico, mas no peso certo para nos contar uma história.”

 
Quando tu vês um filme tipo o Interstellar, por exemplo, vemos que ele teve o cuidado de estudar os buracos negros, o sistema, as naves espaciais, como é que aquilo se interligava. Tens o caso paradigmático do 2001 Odisseia no Espaço, é um filme que tem muita Engenharia, que tem ali um lado tecnológico, mas no peso certo para nos contar uma história.


 

O “2001 Odisseia no Espaço” é um filme que tem muita Engenharia, que tem ali um lado tecnológico, mas no peso certo para nos contar uma história. Neste caso, eu ainda hoje me baralho a cabeça perceber como é que em 1967 se fez um filme daqueles e como é que as pessoas reagiram àquele filme. Aquilo é tudo fora da caixa, não tem nada a ver com o que se fazia e com o que se faz.

Outro que também não é um filme de Engenharia mas é um filme com muita Engenharia, que é o Inception, também do Christopher Nolan. Os filmes do western spaghetti, aqueles que eram do Sergio Leone tens ali momentos que tu dizes: isto tem muito de pensamento, de desenvolvimento. Há uma história engraçada que mete a Engenharia, que é o filme por um “Por um Punhado de Dólares”: o filme que se passa na Guerra Civil Americana, e tinham definido que iam destruir a ponte, mas como falavam quatro línguas diferentes, o homem fez sinal para ensaio e os espanhóis rebentaram com a ponte antes das filmagens (risos)
 

 

Sobre se o cinema atual abre horizontes para os Engenheiros

Abre horizontes principalmente em determinadas áreas da Engenharia. Da animação ao cinema real e de ação.
 

“Um filme de ação tem um lado de Engenharia Mecânica muito complexo,

porque fazer cair o carro e fazê-lo dar a cambalhota

obedece tudo a cálculos, tudo aquilo é estudado”

 

 
Portanto eu acho que mais do que nunca a Engenharia está muito presente até de forma muito subtil nas produções de cinema atuais, principalmente nas americanas, porque a Europa sempre olhou o cinema como arte e os americanos sempre olharam o cinema como entretenimento para ganhar dinheiro e essa forma diferente de ver a coisa permitiu-nos ser mais criativos do ponto de vista narrativo e de história e os americanos serem mais empolgados no lado visual e isso é que envolve aí as novas tecnologias.

“O E.T. é uma obra de Engenharia.

O boneco em si é robótica, antes de haver robótica.”

 
O Rambaldi criou o boneco, era engenheiro de formação e criava aquelas coisas de tecnológica todas, criar aquele vaso do E.T que saia as pétalas e tal, aquilo deve ter dado uma trabalheira. Hoje um informático gráfico, resolvia o problema.
 

 

Sobre os 5 filmes intemporais

 
Logo o primeiro, O Padrinho do Coppola, é daqueles filmes que sempre que se vê, encontra-se o mesmo encanto desde a primeira vez que o vemos e nunca encontramos nada que já tenha passado de moda ou não faça sentido, tudo ali, aquilo é uma aula de cinema. Outro que apesar de ter a marca do tempo, se nós nos distanciarmos dessa marca, vemos um filme eterno que é o Citizen Kane, porque é muito inovador para a altura, a história está muito bem amarrada e bem construída, tudo aquilo encaixa e desenvolve muito bem. Obrigatório, tenho dificuldade em só escolher um dele, mas entre a Quimera do Ouro ou os Tempos Modernos, estou dividido, a mim toca-me mais a Quimera do Ouro, mas os Tempos Modernos é mais engenhoso e mais criativo do ponto de vista narrativo, mas são ambos obrigatórios do Chaplin. Tenho dificuldade em escolher qual do Spielberg, mas se calhar, como espetáculo de cinema, eu incluía aí porque é representante de um género de cinema de uma maneira muito especial o Indiana Jones e Salteadores da Arca Perdida. Juntava aí a Cavalgada Heroica do John Ford, que eu acho que é um filme belíssimo do ponto de vista criativo e representa muito bem aquele período do cinema western ainda do fim do tempo do preto e branco, que tem um trabalho de luz importantíssimo.

 
Juntava aí o Lawrence de Arábia que é o filme, dos mais importantes da história cinema. O quinto, eu gostava de incluir um filme de um período fantástico de Hollywood, que é com as coisas e as histórias mais ligeirinhas que era para mostrar um cinema que não só de grande produção, de grande escala que é o Peço a Palavra, um filme datado mas riquíssimo do ponto de vista cinematográfico e de interpretação que nos obriga a pensar.
 

Sobre o futuro da TV tradicional vs Netflix, Smart TV e o Youtube

Sinceramente, eu tenho uma opinião sobre a televisão que me preocupa, porque eu vivo da televisão, a minha profissão é a televisão.
 

“Eu acho que a televisão tal qual como a conhecemos

já morreu e ainda ninguém quis fazer o enterro”

 
Na verdade, hoje as pessoas não vêm televisão. Esta falsa questão do day time, dos fenómenos de apresentadores populares, e que dão carros e que vão as feiras, isso é uma falsa proximidade das pessoas. A televisão era um espetáculo. Há muito stock de conteúdos. As televisões, as portuguesas especialmente, como nós somos poucos, é um país pequeno, não temos mercado para o nosso conteúdo, nós não temos informação que chegue para tantos canais. A televisão em breve vai falar comigo, hoje já não tenho que chegar a casa às 8 para ver o telejornal. Se eu chegar as 8:10, puxo a box para trás e ela mostra-me. Portanto, a televisão vai mudar radicalmente nos próximos anos, só não mudou e não vai mudar tão rápido porque o sistema obriga a que ela esteja agarrada a um velho sistema que teima em durar, mas já não tem audiência, já não tem público, só quando acontece os covids, um acidente, um temporal, um escândalo ou um crime, porque as pessoas querem ver, tem esse sentimento mórbido de ir à procura.
Não é a mesma coisa ver um filme na televisão e ver numa sala de cinema, não é a mesma coisa ver uma série e um filme de longa metragem. São técnicas idênticas, são irmãos separados à nascença, mas quando olhamos para uma série que tem técnicas de captação de interesse do espectador, que tem regras muito próprias para construir a história.
 

As séries que a Netflix hoje nos dá, aquilo obedece a uma receita,

que está bem formulada. O foco é para levar o espectador até ao

fim daquele episódio, amarrá-lo.

 

Quando a tecnologia se sobrepõe à criatividade, nós temos um bom catálogo de efeitos especiais, quando a criatividade se serve da tecnologia, para nos contar uma boa história, aí poderemos ter um grande filme e uma grande história que nunca mais nos esquecemos.
 
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Edição e texto: Catarina Soutinho | Transcrição: Sofia Vieira e Inês Miranda | Design Gráfico: Melissa Costa

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