Estatísticas Agrícolas: o que nos mostram e o que nos escondem

Artigo técnico por: Manuel Ângelo Rodrigues, Engenheiro Agrónomo, professor coordenador com agregação no Instituto Politécnico de Bragança

Portugal importa uma parte significativa dos bens alimentares que consome. Ainda que o investimento na agricultura tenha sido fortíssimo nos anos recentes, e em muitos setores o grau de autoaprovisionamento aumentado, em diversos outros o país continua deficitário. Em 2020, o saldo da balança comercial dos produtos agrícolas, excluindo bebidas, foi negativo em mais de 3000 milhões de euros (INE, 2021). As carnes, os cereais e as sementes e frutos oleaginosos são os produtos que normalmente mais contribuem para o saldo negativo, mas muitos outros, como os produtos hortícolas, raízes e tubérculos e as frutas, apresentam também saldo negativo entre exportações e importações (INE, 2021).

O setor dos cereais é paradigmático. O grau de autoaprovisionamento de trigo tem estado abaixo de 5%, de milho abaixo de 30%, de centeio abaixo de 50% (o consumo deste cereal em Portugal é muito reduzido) e de arroz em casca abaixo de 90% (INE, 2021). A produção de trigo tem sofrido forte decréscimo nas últimas décadas (Figura 1). As principais razões para o decréscimo da produção de trigo (e dos cereais de inverno em geral) em Portugal são as produtividades unitárias muito baixas quando comparadas com as que se registam em países concorrentes (Figuras 2 e 3).  Tendo em conta que a estrutura de custos é equivalente nos diferentes países, produtividades tão baixas como as que se registam em Portugal reduzem drasticamente a receita dos produtores e originam o abandono da atividade.

Figura 1. Evolução da produção de trigo em Portugal desde a década de 1960 (FAOSTAT, 2022)

Figura 2. Evolução da produtividade do trigo na Irlanda e em Portugal desde a década de 1960 (FAOSTAT, 2022). Verifique-se que o aumento anual de produtividade na Irlanda ultrapassou largamente 100 kg ha-1 enquanto em Portugal aumentou um pouco mais que 20 kg ha-1, mesmo tendo em conta que, nos anos recentes, algumas searas de trigo têm vindo a ser regadas.

Figura 3. Evolução da produtividade do centeio na Dinamarca e em Portugal desde a década de 1960 (FAOSTAT, 2022). Verifique-se que o aumento anual de produtividade na Dinamarca ultrapassou largamente 50 kg ha-1 enquanto em Portugal aumentou um pouco abaixo dos 7 kg ha-1.

No presente, Portugal investe fortemente na agricultura e usa tecnologia e fatores de produção em nível equivalente ao que ocorre em outros países europeus. Porquê então, as baixas produtividades? A produtividade de uma cultura é determinada por variáveis ambientais (clima e solo, mas sobretudo clima) e tecnológicas (potencial genético da semente, adaptação das cultivares às condições locais e técnicas de cultivo pelo geral). Se sobre as primeiras em agricultura de ar livre pouco pode ser feito, as segundas são determinadas pelo homem e necessitam de ser otimizadas para contextos locais. No caso dos cereais de inverno, exemplificados com o trigo (Figura 2) e o centeio (Figura 3), tradicionalmente cultivados em sequeiro, as produtividades são baixas, em comparação com o que ocorre em latitudes mais elevadas, sobretudo pela ação de variáveis ambientais. Isto é, em Portugal, o clima não permite que se atinjam as produtividades do trigo na Irlanda ou do centeio na Dinamarca.

Os principais constrangimentos a estes cereais cultivados em sequeiro são as reduzidas precipitações e temperaturas muito elevadas que se registam a partir do mês de maio (Figura 4), às quais se associam baixa humidade atmosférica e radiação excessiva. Os cereais de inverno são plantas de metabolismo C31, nas quais a fotossíntese líquida decresce rapidamente à medida que aumenta a temperatura, devido ao aumento da fotorrespiraçao2, à necessidade de as plantas fecharem os estomas e de aumentar a respiração celular. As temperaturas ótimas para estes cereais nas fases de grande expansão vegetativa, floração e enchimento do grão situam-se entre 15 a 20 ºC, valores muito inferiores às temperaturas que se registam em Portugal a partir do mês de maio. Com temperatura elevada e humidade atmosférica baixa, aumenta a evaporação de água a partir do solo e a transpiração da planta, reduzindo a eficiência de uso da água. Em resumo, na Irlanda há mais água disponível (precipitação) e as plantas utilizam-na de forma mais eficiente (maior produtividade da água3), o que gera uma enorme diferença de produtividade. Falta apenas esclarecer se as diferenças de produtividade entre países observadas na figura 2 se devem apenas às variáveis ambientais referidas ou se envolvem também problemas tecnológicos associados ao cultivo.

Figura 4. Precipitação (Prec) e temperaturas médias das mínimas (Tmin) e médias das máximas (Tmax) mensais em Dublin e Évora.

Portugal regista também problemas de produtividade na área dos hortícolas e das frutas. Nestes setores exemplifica-se com culturas de regadio, feitas em regimes muito intensivos. Nestes casos, a falta de precipitação estival, o principal constrangimento ecológico do país à produtividade das culturas, não deve ser considerado tão relevante uma vez que a falta de precipitação é compensada com a água de rega. Ainda assim, e de acordo com as estatísticas da FAO (FAOSTAT, 2022), a produtividade média nacional de batata (produzida basicamente no Norte e Centro Litoral e no Ribatejo por produtores altamente profissionais) tem estado em cerca de 22 t ha-1. Nos Estados Unidos atingem-se 50 t ha-1 e em países da bacia mediterrânica, como Espanha e Itália, ultrapassam-se 30 t ha-1. Nas árvores de fruto, em Portugal produzem-se em média 20 t ha-1 de maçã, 11 t ha-1 de pêssego e 13 t ha-1 de kiwi. Na Nova Zelândia produzem-se 57 t ha-1 e em Itália 42 t ha-1 de maçã. No pêssego, Chile, França, Grécia e Itália produzem acima de 20 t ha-1. No kiwi, Nova Zelândia produz 40 t ha-1, Grécia 27 t ha-1 e Itália 21 t ha-1. Na cultura da batata e fruteiras, a intensificação cultural é equivalente em todos estes países, sendo também equivalentes os custos de produção.  No contexto europeu, Portugal tem até uma pequena vantagem, uma vez que tem custos com mão-de-obra inferiores aos principais países concorrentes. Assim, o rendimento dos agricultores é determinado sobretudo pela produtividade. Não é a mesma coisa produzir 20 t ha-1 ou 40 t ha-1 de maçã, quando os custos operacionais e o valor da fruta no mercado são equivalentes.   

Se para os cereais de inverno cultivados em sequeiro se aceita que as produtividades baixas sejam, em grande medida, devidas a variáveis ambientais, cujo controlo está fora do alcance dos produtores, já é mais difícil aceitar que se passe o mesmo com a batata e as árvores de fruto, utilizadas como exemplo neste documento. Isto não significa que Portugal tenha condições ambientais ótimas para produzir batata, maçã, pêssego ou kiwi, mas estas estatísticas mostram que Portugal tem também problemas sérios nos processos de cultivo. As variáveis ambientais não justificam só por si uma discrepância tão grande nos valores de produtividade.

O cultivo de batata é tecnicamente muito difícil. Isto reflete-se na grande variação de produtividade que os produtores individuais registam ano após ano. Na batateira é muito difícil otimizar a densidade de plantação, conjugada com o calibre dos tubérculos e o seu abrolhamento. De um tubérculo-semente é originada uma batateira, mas esta pode ter um ou vários caules (Figura 5). Contudo, o que determina a produtividade de um campo de cultivo é o número de caules e não o número de batateiras. Poucos agricultores têm estes aspetos em conta ou mesmo conhecimento destas realidades. Diversas outras técnicas culturais são difíceis de otimizar na batateira, designadamente a rega, a fertilização azotada e a proteção fitossanitária, daí resultando produções médias nacionais baixas. O cultivo de árvores de fruto é também tecnicamente difícil. A produtividade depende grandemente do estabelecimento de um índice de área foliar adequado às condições locais de radiação disponível. Contudo, Portugal nunca desenvolveu investigação orientada para a gestão da canópia, como sistemas de condução e poda. Em Portugal os pomares são estabelecidos e geridos com base em tendências observadas em outras regiões do globo, muitas vezes com variáveis ambientais bastante distintas. Além disso, nos pomares é também muito difícil otimizar, entre muitos outros aspetos, a floração, o vingamento e a monda de frutos, aspetos determinantes para a qualidade da fruta e para contrariar fenómenos de alternância. Por tudo isto, é claro que a baixa performance produtiva das culturas em Portugal se deve não só a condições ambientais menos favoráveis, mas também a problemas diversos com as técnicas de cultivo.

Figura 5. Duas batateiras, uma com apenas um caule principal (esquerda) e outra com três (direita). Ainda que cada uma destas batateiras tenha sido originada de um único tubérculo-semente e em campo colocadas no mesmo compasso, a batateira da direita com três caules principais tem três vezes maior potencial de produção que a batateira da esquerda.

Em Portugal, o setor agrícola tem constrangimentos diversos, alguns adequadamente diagnosticados. A falta de mão-de-obra e a falta de organização em muitos setores são alguns dos mais difíceis de ultrapassar. Contudo, um diagnóstico adequado é o primeiro passo para se investir numa solução. Os problemas persistentes são normalmente aqueles que têm uma solução difícil, mas são sobretudo também aqueles que não estão, de todo, diagnosticados. A baixa produtividade é provavelmente o problema mais preocupante, que passa despercebido ao Ministério da Agricultura, a universidades e politécnicos, centro de investigação e laboratórios colaborativos e até aos próprios produtores. Portugal tem um problema de baixa produtividade em praticamente todos os setores, sobretudo quando a agronomia da espécie é um pouco mais complexa como acontece com a batateira e as árvores de fruto.

Portugal não faz investigação na área da agronomia e isso faz toda a diferença. Não há trabalho experimental orientado para a tomada de decisão. Os produtores tomam as suas decisões em contato direto com as empresas que prestam serviços ou vendem fatores de produção. Nenhuma das ações do produtor (podar, gerir o solo, adubar, regar, estabelecer calendários de tratamentos, aplicar um bioestimulante, …) está otimizada à escala local. O setor produtivo comete pequenos erros em cada uma destas práticas, que individualmente correspondem a pequenas ineficiências nos processos fotossintéticos das plantas, mas que, quando acumulados, dão perdas de produção que podem ser significativas. Em Portugal, ao nível da tomada de decisão dos produtores, em vez de se estabeleceram programas de investigação que levem à otimização de técnicas e processos, desenvolveu-se o conceito de divulgação de “boas práticas”. Isto é, colocou-se o “carro à frente dos bois”. Sem conhecimento otimizado pela ciência à escala local, divulgar “boas práticas” é divulgar opiniões. Qualquer pessoa que contacte com os setores produtivos percebe a diversidade de opinião entre académicos, investigadores, técnicos e agricultores sobre a generalidade das práticas agronómicas que determinam a produtividade das culturas. Outra prova irrefutável é a presença de técnicos, tecnologias e fatores de produção não nacionais (sobretudo espanhóis) que operam no território nacional, sobretudo associados a setores ou empresas que são vistos como os mais desenvolvidos. Em Portugal confunde-se investimento com conhecimento. Portugal tem investido fortemente no setor agrícola e usam-se equipamentos e fatores de produção em intensidade equivalente a qualquer outro país europeu (Figura 6), contudo, com menos conhecimento. Para além do clima, o conhecimento (ou a falta dele) é dos grandes constrangimentos ao desenvolvimento sustentável do setor agrícola português. Sustentável porque, na situação atual, se usam fatores de produção frequentemente em excesso e, mesmo assim, com produtividades aquém do que o ótimo ecológico (clima e solo) permite.

Figura 6. Colheita mecanizada e com animais. A mecanização, pelo geral, resolve problemas importantíssimos, como a falta de mão-de-obra, e reduz significativamente os custos, permitindo o cultivo em áreas enormes, mas não aumenta a produtividade das culturas.

Os produtores nacionais estão muito recetivos a investir em novos produtos e novas soluções. Infelizmente, a academia e a ciência não os ajudam a estabelecer os critérios para uma escolha adequada a cada situação. Os produtores não têm como saber se os custos do novo fator de produção e sua aplicação se revertem em um benefício na produtividade e/ou na qualidade da produção, de forma a ter retorno económico no investimento realizado. Novas tecnologias e novos produtos, frequentemente apresentados como inovadores, para os agricultores são uma espécie de D. Sebastião, ou uma fuga para a frente. É necessário fazer alguma coisa, arrisca-se um pouco mais. Infelizmente com pouco critério. Perde o agricultor, perde o país, perde o ambiente.

Referências

INE (Instituto Nacional de Estatística). 2021. Estatísticas Agrícolas – 2020. INE, Lisboa. Disponível em www: <url:https://www.ine.pt/xurl/pub/437147278

FAOSTAT. 2022. Data: Crops and Livestock Products. Food and Agriculture Organization of the United Nations. https://www.fao.org/faostat/en/#data/QCL (consultado em 29 de julho de 2022).

Nota biográfica

Manuel Ângelo Rodrigues

Engenheiro Agrónomo (cédula profissional nº 31074); licenciado pelo Instituto Superior de Agronomia; professor coordenador com agregação no Instituto Politécnico de Bragança; e investigador no Centro de Investigação de Montanha. É autor ou coautor de mais de duas centenas de artigos publicados em livros e revistas internacionais e nacionais. Instalou e monitorizou mais de meia centena de campos experimentais em colaboração direta com produtores visando otimizar processos de cultivo ao nível da tomada de decisão (on-farm research).

Notas para rodapé

1Ciclo metabólico associado à generalidade das espécies de climas temperados. O dióxido de carbono atmosférico entra diretamente no ciclo de Calvin. Este processo converte o dióxido de carbono e a ribulose 1,5-bifosfato (um açúcar com 5 átomos de carbono já existente na planta) em duas moléculas de 3-fosfoglicerato (com 3 átomos de carbono, de onde resulta a designação C3).

2Via metabólica existente nas plantas C3 que ocorre quando a enzima RuBisCO (ribulose-1,5-bisfosfato carboxilase oxigenase) do Ciclo de Calvin atua sobre o oxigénio em vez de dióxido de carbono. Em vez de duas moléculas de 3-fosfoglicerato, normais no metabolismo C3, a RuBisCO produz uma molécula de 3-fosfoglicerato e outra de fosfoglicolato, esta com dois átomos de carbono, que é depois metabolizada num processo que representa uma perda de eficiência fotossintética da planta.

3Representa a produtividade da cultura (normalmente em matéria seca) em função da água utilizada, sendo normalmente expressa em kg m-3.

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