A 10 de novembro de 2023, Manuel de Matos Fernandes dava a sua última aula, no auditório da FEUP, perante uma plateia de alunos, ex alunos, amigos e muitos admiradores do trabalho que durante anos marcou a vida de muito engenheiros.

Confessa-nos que em 50 anos de carreira, a distinção que mais satisfação lhe deu foi o Prémio de Excelência Pedagógica, e agora que o percurso académico terminou, assume que tem planos para se manter ativo.

Membro da Ordem dos Engenheiros desde 1984 Manuel de Matos Fernandes é hoje o entrevistado das Grandes Entrevistas de Engenharia da OERN.

PERFIL

Professor Catedrático da Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto

Formação:  Engenharia Civil (1976), Doutoramento (1984)

Prémio: Prémio de Excelência Pedagógica da FEUP (2013)

Uma carreira longa e profícua, como a resumiria em poucas linhas?

Longa sim. Se foi profícua ou não, deixo isso ao julgamento dos meus estudantes e dos meus pares.

Trabalhei sempre com a perspetiva de que a Universidade deve, antes de mais, estar ao serviço dos seus estudantes.

Na sequência do prémio, numa breve entrevista gravada para memória futura aqui na FEUP, pediram-me uma frase que ajudasse a explicar a distinção recebida. Respondi, após breve reflexão: dar cada aula como se fosse a primeira! Enfim, na faixa etária em que na altura já me situava, teria sido mais apropriado dizer: dar cada aula como se fosse a última…

Outro ponto em que particularmente me empenhei foi na dinamização na FEUP da área da Geotecnia. Quando me doutorei (1984) a Geotecnia era considerada pela maioria dos meus pares uma área, digamos, “exótica”, de importância menor. Um forte impulso para lhe dar a importância devida veio, curiosamente, da parte dos estudantes e do modo como eles aderiram às aulas de Mecânica dos Solos. Isso permitiu criar a partir de 1987/88 um Ramo (então a designação era Opção) de Geotecnia no 5º ano da licenciatura, emparceirando com os ramos já há muito lecionados. 

A capacidade de atração de estudantes com percurso académico de elevado mérito foi, desde o início, um aspeto marcante da Opção de Geotecnia. Até 2020/21 formou cerca de 550 engenheiros civis com especialização nessa área. Destes, 28 estão atualmente doutorados. O atual Diretor da FEUP é um deles. Um dos atuais Vice-Reitores da Universidade do Porto é também um deles.

Com certeza não deixará a Engenharia para trás. Quais os seus planos daqui para frente?

Quando falo nesse assunto com os amigos, costumo brincar e digo que tenho planos editoriais até aos 90. Quero dizer, escrever e coordenar alguns livros novos e publicar novas edições dos atuais. Se tiver saúde, a persistência e o entusiasmo não faltarão. Espero manter também a minha atividade como consultor. Felizmente, continuo a ter interessantes desafios nesse campo.

Como vê o futuro da Engenharia. Quais os desafios que é preciso superar?

Há uma frase que costumava discutir com os estudantes na primeira aula de História da Engenharia Civil: a Engenharia Civil é responsável pelas infraestruturas da CIVILização.  Logo, o futuro não é possível, quer nos países desenvolvidos, quer nos países em desenvolvimento, sem a Engenharia Civil. O que não quer dizer que lhe seja dado o devido valor (entendido em sentido lato e não apenas pecuniário).

A Sociedade está cada vez mais dominada pela financeirização e esta implica decisores (e aqui refiro-me sobretudo aos privados) com uma formação de gestão enviesada, focados nos resultados de curto prazo. Isso tem tido como reflexo, nos anos mais recentes e no nosso País, uma redução intolerável dos salários dos Engenheiros Civis, em especial dos mais jovens, associada a um “dumping” absurdo dos preços contratados de projetos e outros serviços de Engenharia.

Passando à esfera pública, quando se lamenta os enormes atrasos das obras da ferrovia e de outros grandes investimentos públicos, isso já é consequência do processo de desvalorização da Engenharia. As respostas a essas necessidades exigem uma Engenharia pujante com profissionais com qualidade e devidamente motivados e remunerados.

A situação apontada contribuiu decisivamente para a drástica redução das candidaturas aos cursos de Engenharia Civil na última década. Muitos profissionais com experiência emigraram. Jovens engenheiros recém-formados também. A falta de profissionais é cada vez mais sentida. Vislumbro uma ténue mudança na situação, em particular nos salários oferecidos aos jovens Engenheiros. Mais cedo ou mais tarde, a famosa lei da oferta e da procura terá de funcionar.

Durante toda a sua carreia com certeza assistiu a uma evolução na forma como os alunos encaram a esta profissão. O que mudou?

A pergunta é interessante (e importante), a resposta é difícil. Há aqui muitos aspetos envolvidos, uns de natureza essencialmente comum a todos os jovens universitários, outros específicos da Engenharia Civil.

Começando por estes, durante décadas o curso de Engenharia Civil manteve uma invejável atratividade. Recebíamos na FEUP estudantes com classificações muito elevadas, e que na sua totalidade (ou quase) se tinham candidatado ao curso em 1ª opção. Tipicamente, a motivação e o desempenho escolar iam melhorando ao longo do curso, à medida que as disciplinas mais ligadas à Engenharia iam aparecendo. Uma alta percentagem dos estudantes concluía o seu curso, e abraçava a Profissão com confiança e entusiasmo, encontrando facilmente trabalho em Portugal. 

Após a grave crise centrada, talvez, em 2014 e 2015, nos últimos anos temos tido na Engenharia Civil na FEUP uma situação razoavelmente estabilizada, com preenchimento integral das vagas, embora as classificações de entrada tenham naturalmente sofrido redução, acompanhando a redução do número total de candidaturas. Em paralelo, o chamado numerus clausus foi ajustado para baixo.

Na minha opinião, não devemos sobrevalorizar a questão das classificações de entrada. Cito de memória um estudo do Professor José Sarsfield Cabral, Pró-Reitor da UP, realizado há cerca de 10 anos e abrangendo todos os estudantes da UP, que mostrava existir fraquíssima correlação entre a classificação de entrada na Universidade e o desempenho escolar no curso.

Mais séria é a questão de um número significativo de estudantes admitidos atualmente em Engenharia Civil na FEUP não terem selecionado o curso em 1ª opção no processo de candidatura (nos anos mais recentes, cerca de 1/3 dos estudantes admitidos). Isso conduz, para muitos destes estudantes, a uma menor motivação, logo mais baixo rendimento escolar, e até a um abandono precoce do curso.

Para os restantes estudantes, aqueles que foram admitidos em 1ª opção, aquilo que referi acima para os Colegas mais velhos acho que continua no essencial a aplicar-se. Com uma importante diferença: muitos encaram como natural ir trabalhar para o estrangeiro (em especial em países do centro e do norte da Europa), porque o salário oferecido pela maioria dos empregadores nacionais está ainda claramente abaixo do que seria razoável. E essas oportunidades de trabalho fora do país são facilitadas pela excelente cotação que o curso da FEUP atingiu internacionalmente, fruto da competência demonstrada por Colegas de cursos anteriores. Refira-se que a opinião dos grandes empregadores internacionais é um dos aspetos considerados no ranking internacional QS, no qual a Engenharia Civil é uma das áreas mais cotadas da UP.

Mas há também uma mudança nas soft skills…

Outras coisas mudaram ao longo destes anos, não estritamente características – quero crer – dos estudantes de Engenharia Civil: maior dificuldade de concentração, sobretudo nas aulas teóricas clássicas; dificuldade em estudar pelos livros, que se traduz em menor competência em responder por escrito a certas questões que exijam uma articulação de ideias com um pouco de complexidade; menor adesão a certas atividades extra-aulas, como visitas de estudo, palestras e eventos similares.

Outro sinal dos tempos: os estudantes hoje aguardam o início das aulas em absoluto silêncio, concentrados nos seus iPads, enquanto no passado, ao chegar ao anfiteatro, eu os encontrava em animada conversa, revelando não apenas boa disposição, mas um salutar espírito de grupo. Este ponto, confesso, é de entre aqueles que enumerei o que mais me preocupa. Vejo os cursos muito deslaçados, pouco solidários, constato um maior individualismo nos estudantes, menor entreajuda, o que não significa necessariamente maior competição. E isso traduz-se, globalmente, num mais fraco desempenho académico e numa menor aquisição de algumas das chamadas soft skills, que são fundamentais para a vida profissional.   É que a preparação para a profissão não se restringe de modo algum às aulas e ao estudo: é a vivência global daqueles anos que é marcante para responder com mais ou menos sucesso às exigências da Vida depois do curso.  

Quais devem ser a características de um bom engenheiro?

Tradicionalmente, a resposta era:  Engenheiro é aquele que tem Engenho. Frase que era muito cara, por exemplo, ao Engenheiro Edgar Cardoso, que fez dela o lema da sua brilhante carreira profissional.

Atualmente é mais difícil responder a esta pergunta porque a atividade dos Engenheiros, e mesmo falando apenas dos Engenheiros Civis, é extremamente abrangente: projeto, construção, gestão de projetos, gestão de obras, gestão de infraestruturas (de transportes, água, energia, habitação), quer em fase de construção, quer em fase de exploração, administração pública (central, regional e local), e outras ainda.

Para um projetista o Engenho continua a ser fundamental, tal como na direção de certas obras complexas. Para as outras atividades, a capacidade de planear, de gerir e motivar equipas, de gerir processos, recursos e equipamentos, a inteligência emocional, a empatia, a capacidade de formular com rigor e correção uma questão complexa por escrito ou oralmente, o domínio de línguas para além do Português, são tão ou mais importantes do que o engenho, no sentido tradicional do termo.

Na Engenharia Civil, a interferência com o Ambiente e com a Paisagem é muito mais intensa do que nas outras engenharias.  Por isso, a sensibilidade para as questões ambientais e paisagísticas – para mais no atual contexto de alterações climáticas – é decisiva, e sê-lo-á cada vez mais.

Esta sensibilidade exige Cultura, em sentido lato, mas também naturalmente cultura técnica. Esta é indispensável para dar a cada Engenheiro a noção do Património Construído, e do seu contexto no espaço (Território) e no tempo (História).

Como vê o papel da Ordem na vida de um engenheiro?

A Ordem é importante para regular o exercício da Profissão. E isso tem-no feito razoavelmente, embora o que está por fazer seja muito.

Mas gostaria de ver a minha Ordem ser muito mais interventiva na definição das Políticas Públicas, ajudando os órgãos de governo do País. Refiro-me à legislação, como o Código de Contratação Pública, os regulamentos e códigos ligados à Construção nova e reabilitada, as regras ligadas ao licenciamento de obras, etc.

Refiro-me também à discussão dos empreendimentos estruturantes: alta velocidade ferroviária, novo aeroporto, novas obras para combate às alterações climáticas. E também à discussão da política de Habitação, à proteção do Património Monumental, à segurança sísmica deste património e de equipamentos críticos, etc.

A OE deveria tomar a iniciativa de apresentar os seus pontos de vista, diretamente à opinião pública, não esperando por solicitações das Autoridades e dos Media. E fazê-lo com qualidade e impacto e com “porta-vozes oficiosos”, respeitados na Profissão e devidamente preparados. Tenho mágoa de ver que algumas intervenções da OE e da Engenharia, quando solicitadas, não tenham a qualidade devida, e que muitas vezes (e vozes) apareçam nos Media com agenda política marcada e num registo de sensacionalismo, que prejudica o tratamento das questões e desprestigia a Engenharia.

Entrevista: Catarina Soutinho | Design: Melissa Costa