Por:
Paulo Cabral, Diretor do Gabinete de Relações Institucionais do IEP e Coordenador da Especialização em Metrologia da Ordem dos Engenheiros
A crescente complexidade tecnológica dos dispositivos eletrónicos, bem como a inclusão nesses dispositivos de mecanismos para envio e receção de dados e para o seu controlo através da Internet, levantam hoje inúmeras questões. Aspetos como a cibersegurança e a proteção de dados pessoais estão na ordem do dia, mas há também que ter em consideração a segurança física e o correto funcionamento, tanto dos próprios dispositivos como dos outros equipamentos com os quais eles possam interferir. A compatibilidade eletromagnética (EMC) abrange todos estes aspetos e assume uma relevância cada vez maior à medida que a Internet das Coisas (IoT) é uma realidade cada vez mais presente no nosso dia-a-dia.
Nenhum produto é uma ilha
Parafraseando John Donne (1572-1631), “nenhum produto é uma ilha”. Sempre que estão em funcionamento, todos os produtos eletrónicos, sejam eles alimentados pela rede elétrica ou por baterias, incluindo os dispositivos eletrónicos que estão instalados em veículos, produzem campos eletromagnéticos. As consequências desses fenómenos podem ser as mais variadas. Uma das mais comuns é provocar interferências noutros equipamentos que se encontram na sua proximidade.
Com a crescente complexidade das tecnologias atuais, identificar todas as possíveis fontes de interferência, tanto aquelas que são produzidas pelos próprios equipamentos como as que neles são provocadas por outros equipamentos, não é tarefa simples.
Muitos fabricantes encaram os ensaios de EMC como um contratempo que atrasa a colocação dos seus produtos no mercado. Tal perceção resulta sobretudo de não considerarem a questão da compatibilidade eletromagnética logo desde as fases iniciais do projeto.
No princípio era o caos
No início do século XX, quando a Marinha dos EUA introduziu a telegrafia sem fios para transmitir informações por ondas hertzianas, todos os transmissores estavam sintonizados na mesma frequência. Isso provocava enormes interferências sempre que havia vários transmissores a operar em simultâneo, tornando a comunicação impossível, com os óbvios riscos que isso representava para as forças militares.
Em resposta ao caos radioelétrico assim criado, foi elaborado aquele que se poderá considerar o primeiro regulamento sobre compatibilidade eletromagnética, que atribuiu frequências diferentes aos diversos tipos de utilizadores de rádio. Essa regra legal, combinada com os avanços tecnológicos, abriu caminho ao crescimento das comunicações via rádio e à radiodifusão.
As regras da EMC estimulam a inovação
Desde então, os regulamentos legais, os métodos de ensaio e as normas de EMC foram sucessivamente revistos e aperfeiçoados para acompanharem os mais recentes desenvolvimentos das tecnologias. Atualmente, na Europa, todos os dispositivos eletrónicos, quer sejam alimentados pela rede elétrica ou por baterias, devem estar em conformidade com a Diretiva 2014/30/UE, ou Diretiva da Compatibilidade Eletromagnética (EMC), exceto se possuírem alguma forma de comunicação por radiofrequência (RF), caso em que os aspetos de compatibilidade eletromagnética ficam sob a alçada da Diretiva 2014/53/UE, Diretiva dos Equipamento de Rádio (RED).
Estas Diretivas (EMC e RED) visam assegurar que os equipamentos elétricos e eletrónicos possuem níveis de imunidade adequados para funcionarem da forma prevista no ambiente eletromagnético a que se destinam, para além de não produzirem perturbações eletromagnéticas que possam interferir com outros equipamentos.
A Diretiva RED assume particular relevância quando se pensa na crescente adoção de tecnologias “inteligentes”, porque nesses casos as falhas de conectividade são vistas pelos utilizadores como inaceitáveis, constituindo um dos maiores obstáculos à generalização da Internet das Coisas (IoT).
Se pensarmos no que se espera que seja uma casa “inteligente”, na qual tudo deve estar conectado e funcionar em conjunto de forma harmoniosa, vemos que quanto maior for a densidade de dispositivos eletrónicos nesse ecossistema tanto maiores serão as probabilidades de ocorrerem interferências entre eles.
Os ensaios de EMC não devem ser encarados como exigências legais que apenas provocam uma sobrecarga adicional às equipas de desenvolvimento dos produtos. Devem antes ser vistos como uma oportunidade que os fabricantes de equipamentos eletrónicos têm para resolver estes problemas do “primeiro mundo” logo nas fases iniciais do processo de conceção dos produtos, evitando assim que tais problemas se manifestem quando os equipamentos já estiverem no mercado.
Para melhorar é preciso ensaiar
O nível de ruído eletromagnético gerado por um equipamento, tal como a sua suscetibilidade às interferências causadas por outros dispositivos, depende de vários fatores: da bateria que está dentro do produto, do “layout” da placa de circuito impresso, das antenas, dos cabos de sinal, dos cabos de alimentação, dos sinais de alta frequência gerados nos circuitos RF e nos barramentos de memória de alta velocidade, dos “displays” LCD, etc.
É vulgar que os fabricantes tratem de forma independente o projeto do invólucro do equipamento, a seleção do “display” LCD, ou o desenho da placa de circuito impresso. No entanto, para desenvolver um produto eletrónico de consumo (e não apenas os produtos “inteligentes”) numa correta perspetiva de compatibilidade eletromagnética, os projetistas devem garantir que todos os módulos vão funcionar em conjunto como um sistema completo que limita adequadamente o ruído eletromagnético.
Isso exige uma maior atenção ao “layout”, à densidade do dispositivo, ao posicionamento das antenas, aos percursos dos cabos, à blindagem, ao isolamento e à filtragem, para além dos aspetos funcionais do produto. Isso representa um desafio crescente para os engenheiros, especialmente à medida que aumenta o nível de miniaturização e que os dispositivos se tornam cada vez mais compactos. Para garantir uma operação livre de interferências, é importante considerar os aspetos de EMC logo desde o início do projeto, ainda na fase de conceção, e efetuar ensaios nas diversas etapas ao longo do desenvolvimento do produto.
Possuindo uma experiência de mais de três décadas na avaliação de requisitos de EMC, o IEP – Instituto Electrotécnico Português pode ajudar os fabricantes a incorporar nos produtos eletrónicos as regras corretas da compatibilidade eletromagnética logo desde a sua conceção.
EMC também tem a ver com segurança
Surpreendentemente, muitas pessoas pensam que os requisitos de EMC e os requisitos de segurança são assuntos distintos. No entanto, como se irá ver de seguida, isso não é assim.
A Diretiva EMC exige que os produtos eletrónicos não excedam níveis de emissões acima dos quais os equipamentos de rádio e telecomunicações, entre outros equipamentos, poderão não funcionar como previsto. Impõe também níveis de imunidade às perturbações eletromagnéticas que são de esperar no decurso do seu funcionamento, o que permite que o produto funcione sem ocorrer uma degradação inaceitável no seu uso previsto.
Isso está intimamente ligado com a segurança do produto. À medida que a Internet das Coisas se expande, há cada vez mais produtos eletrónicos interconectados, o que aumenta as probabilidades de interferências entre dispositivos. Tais interferências provocam falhas no desempenho, aumento do ruído, interrupções ou falhas na transmissão e na integridade do sinal, o que pode ter consequências potencialmente graves tanto para a segurança das pessoas como para a segurança das redes de comunicação (comprometendo, por exemplo, a proteção dos dados pessoais e a cibersegurança).
Assim, a conformidade com os requisitos de EMC permite aos fabricantes otimizar a fiabilidade dos sistemas “inteligentes”, ao mesmo tempo que protege a reputação das suas empresas. Ao envolverem um laboratório de EMC no processo de conceção e desenvolvimento de um produto, desde a fase inicial, os fabricantes obtém vantagens competitivas, uma vez que assim evitam ter de introduzir alterações sucessivas ao produto, com a consequente repetição de etapas na avaliação da sua conformidade, o que acarreta poupanças nos custos de desenvolvimento, bem como a redução do tempo necessário até o produto chegar ao mercado.
O IEP é um Centro de Interface Tecnológica (CIT) e ajuda os fabricantes a adotar uma abordagem integral no que se refere à EMC, tendo em vista garantir que um novo produto será compatível com a IoT e que cumprirá os requisitos legais e normativos relevantes nos diversos mercados a que esse produto se destina, tanto em matéria de segurança como de EMC.
Antecipando o futuro
Um dos fatores que serão determinantes na adoção da Internet das Coisas é a disponibilidade de um espectro de frequências adequado. Apesar de os reguladores disponibilizarem bandas de frequência específicas para as comunicações de dados sem fios, o espectro está ocupado e ficará ainda mais saturado à medida que os utilizadores exigirem serviços com cada vez maior qualidade e conectividade instantânea para aplicações como a comunicação por voz sobre IP (VoIP), o “streaming” de vídeo ou os veículos autónomos.
A EMC desempenha um papel fulcral nas tecnologias inovadoras que vão permitir solucionar esse problema, como por exemplo as tecnologias de partilha de espectro. Isso permite que os dispositivos sem fios sejam geridos de forma ativa por sistemas de controlo centralizado, que ligam e desligam os dispositivos IoT em função das prioridades de outros utilizadores.
Outro âmbito relevante para a indústria das tecnologias sem fios é a expansão das comunicações na faixa das ondas milimétricas (mmW) e a crescente implantação de “links” de alta frequência (acima dos 60 GHz), que permitem atingir taxas extremamente elevadas de transferência de dados.
Escusado será dizer que esses desenvolvimentos irão implicar também uma alteração substancial das normas de ensaio de EMC, pelo que o acompanhamento da evolução normativa (participando nas Comissões Técnicas de Normalização relevantes) confere aos fabricantes de produtos eletrónicos uma vantagem competitiva adicional.