E se a carne que comemos viesse do laboratório e não dos animais? Não é ficção científica, é Engenharia, e já está em andamento. Na linha da frente do protejo que desenvolve carne in vitro, está o português Vítor Espírito Santo, mestre em Engenharia Biomédica e diretor na empresa Eat JUST, em Sillicon Valley, nos Estados Unidos.
Faz parte da primeira vaga de engenheiros Biomédicos formados na Universidade do Minho, corria o ano de 2007. Terminado o mestrado integrado, optou pela investigação e seguiu para o doutoramento. Trocou a investigação na área oncológica pela investigação da carne in vitro (carne cultivada) e agora, Vítor Espírito Santo mostra-nos como a Engenharia está a todo gás na vanguarda da alimentação alternativa.
“Um dos objetivos deste projeto
é a alteração dos métodos de produção de carne,
substituindo a produção intensificada”
“Carne Cultivada” é um conceito ainda um pouco abstrato para todos nós. Fale-nos um pouco do seu trabalho na Califórnia.
Atualmente, coordeno o departamento de agricultura celular na Eat JUST. Este departamento dedica-se ao desenvolvimento de carne cultivada, isto é, carne feita a partir de células animais sem necessidade de recorrer ao abate animal e utilizando processos de cultura celular para produzir um produto de carne com uma composição muito semelhante ao que estamos habituados com a produção tradicional. Coordeno a área de investigação, desde a escolha das células iniciais, técnicas de isolamento das mesmas a partir dos animais, expansão de células em birreatores e, finalmente, desenvolvimento do produto. Para além da coordenação dos projetos de investigação, sou também responsável por comunicações com investidores, comunicação social e agências reguladoras internacionais para a aprovação deste tipo de produtos.
“Este projeto necessitava de alguém com o conhecimento
que eu tinha adquirido ao longo do meu percurso de formação e investigação – biologia celular, engenharia de tecidos e conceitos de bioprocesso e “scale-up”.
Qual é no fundo o objetivo deste projeto?
Um dos nossos objetivos neste projeto é a alteração dos métodos de produção de carne, substituindo a produção intensificada de animais que apresenta tremendas questões éticas, ambientais e de segurança alimentar (revelando-se também altamente ineficiente) por uma tecnologia que nos permitirá produzir carne de qualidade semelhante utilizando métodos menos agressivos para o ambiente e que não envolvem o abate de milhões de animais por ano.
“Quando pensamos nos motivos que levaram a esta pandemia (…) leva-nos uma vez mais a questionar como o consumo de carne tradicional, sem os devidos controlos, pode ser prejudicial.”
Em que medida a carne in vitro seria vantajosa numa situação de pandemia como esta que vivemos?
Acima de tudo seria mais uma alternativa de proteína animal numa fase em que várias plantas de abate de animais tiveram que ser encerradas devido ao contágio dos trabalhadores e que levou, por exemplo, à redução de produção de carne de porco para cerca de metade dos números habituais nos Estados Unidos. Quando pensamos também nos motivos que levaram a esta pandemia, nomeadamente a transmissão zoonótica do coronavírus para humanos a partir de um mercado de carne em Wuhan, leva-nos uma vez mais a questionar sobre a segurança alimentar e de como o consumo de carne tradicional, sem os devidos controlos, pode ser prejudicial. A carne cultivada in vitro, como é produzida em fermentadores/reatores estéreis e com práticas de higiene acima da média para garantir que as culturas de células são bem sucedidas, conduzem a um produto final com características mais limpas e seguras.
Como aconteceu esta oportunidade de trabalhar fora do país?
Ao longo da minha carreira na área da investigação já tinha permanecido várias vezes em laboratórios estrangeiros em projetos de colaboração (por exemplo Universidade de Kyoto durante o meu doutoramento ou a farmacêutica AbbVie em Chicago durante o meu projeto no iBET). Estas experiências deram-me a confiança para abordar novos desafios e, claro, alguma exposição internacional para enveredar em novos desafios. A oportunidade para trabalhar na Califórnia surgiu após a minha participação num congresso de carne cultivada em Maastricht em setembro de 2017. A Eat JUST procurava alguém com as minhas valências e este projeto necessitava de alguém com o conhecimento que eu tinha adquirido ao longo do meu percurso de formação e investigação – biologia celular, engenharia de tecidos e conceitos de bioprocesso e “scale-up”.
“Acredito que o projeto ao qual estou dedicado
pode ter um impacto muito significativo no quotidiano
da população mundial a um médio prazo.”
Em que sentido o que faz pode impactar na vida das pessoas?
Acredito que o projeto ao qual estou dedicado pode ter um impacto muito significativo no quotidiano da população mundial a um médio prazo. Estamos a falar do desenvolvimento de produto que vai chegar ao prato dos consumidores. A alimentação é um dos bens essenciais e todo progresso feito nesta área terá um impacto real. Para além disso, estamos a debater-nos com questões ambientais e de ética animal e essas também fazem parte desta discussão.
“Fazer investigação em Portugal apresenta
muitos desafios. A maior parte das vezes
necessitamos de um vínculo académico
e existe pouca iniciativa privada”
Trabalhar nos Estados Unidos é seguramente muito diferente de trabalhar em Portugal. Quais as grandes diferenças que encontra?
A minha experiência resume-se ao setor da biotecnologia farmacêutica e alimentar. Fazer investigação em Portugal apresenta muitos desafios porque a maior parte das vezes necessitamos de um vínculo académico e existe pouca iniciativa privada e financiamento para garantir o desenvolvimento de projetos de modo competitivo com o que se pratica nos Estados Unidos. Aqui em São Francisco as coisas são, por agora, muito diferentes e Silicon Valley é um dos centros de investimento e desenvolvimento tecnológico a nível mundial. Nesse sentido, é mais fácil que os projetos avancem de modo mais rápido uma vez que existe financiamento, que atrai talento internacional para as empresas com presença em Sillicon Valley. Existem, também, diferenças culturais relevantes entre Portugal e os Estados Unidos e, em geral, os projetos tendem a evoluir de modo mais rápido nos Estados Unidos. Da minha experiência pessoal, nota-se uma maior proximidade entre os diversos níveis da hierarquia.
“Portugal tem uma base de Engenharia muito forte
e em geral vemos portugueses com muito êxito
quando enveredam em carreiras profissionais internacionais.”
Como vê a Engenharia que se faz em Portugal. Consegue identificar o melhor e o pior?
Penso que Portugal tem uma base de Engenharia muito forte e em geral vemos portugueses com muito êxito quando enveredam em carreiras profissionais internacionais. Tenho vários exemplos de antigos colegas de curso que enveredaram por carreiras profissionais em países como a Alemanha ou Suíça, que reconhecem a qualidade da formação dos engenheiros portugueses. Também na área de informática e Engenharia civil, penso que somos bastante fortes. Considero que um comportamento esperado de um engenheiro é a capacidade de encontrar soluções eficientes e rápidas para problemas, de modo pragmático, muitas vezes sem os recursos necessários ou o tempo desejado. Nesse sentido, penso que os portugueses têm um pouco essa característica de modo inerente. Nem sempre somos os mais organizados, mas somos capazes de encontrar essas soluções.
“Nos Estados Unidos também existe uma Ordem de Engenheiros que fomenta um espírito de orgulho e responsabilidade pela atividade”
Que tipo de acompanhamento tem um engenheiro a trabalhar nos Estados Unidos?
Um engenheiro a trabalhar nos Estados Unidos tem um acompanhamento semelhante ao que se vê em Portugal. Também existe uma Ordem de Engenheiros que fomenta um espírito de orgulho e responsabilidade pela atividade exercida e que serve de ponte entre a formação académica e o percurso profissional. No meu caso, o acompanhamento que procuro é o de mentores na empresa onde trabalho ou outros colaboradores para desenvolver as minhas valências técnicas e pessoais.
Algum engenheiro que esteja a ler esta entrevista e que pense em trabalhar na mesma área, quais as competências que acha fundamentais terem?
Bons fundamentos básicos de Engenharia, acompanhados de um espírito crítico, capacidade de adaptação e espírito de sacrifício. É também importante ter uma visão a longo prazo e perceber bem o tempo de vida dos projetos, e trabalhar em função disso, sem perder a motivação e a confiança no objetivo final. Aconselho também, vivamente, ao desenvolvimento das chamadas “soft skills”, de modo a que o trabalho em equipa seja mais eficiente.
Salvaguardando a atual conjuntura, que não é propícia para viagens, a verdade é que até à data, a nova geração de engenheiros não tinha medo de arriscar e trabalhar fora do país. Recomenda uma experiência internacional? Porquê?
Sem dúvida, penso que a experiência internacional é uma mais-valia a todos os níveis e quanto mais não seja para perceber as qualidades e as mais-valias que temos nosso próprio pais. Muitas vezes é preciso sair de Portugal para dar valor ao que temos, já que muitas vezes somos os primeiros a criticar o que se faz em Portugal. Uma experiência internacional também nos expõe a culturas e pontos de vista muito diferentes dos quais estamos habituados e isso permite-nos evoluir a nível profissional e pessoal. No entanto, uma experiência internacional deve ser também bem escolhida pois existem várias oportunidades pelo mundo fora, mas é importante ter alguma noção daquilo que queremos e não deixar que uma possível experiência negativa constitua um motivo para abandonar esses planos internacionais.
“A Ordem dos Engenheiros deve funcionar
como uma boa estrutura de suporte e lobby
para diversas atividades de Engenharia”
A Engenharia está na moda? Porquê?
Acho que nunca deixou de estar na moda. Vejo a Engenharia como uma ciência aplicada que transporta os conceitos base das ciências fundamentais ao dia-a-dia da população, praticamente de modo invisível. Todas as atividades essenciais da nossa vida envolvem inúmeros conceitos de Engenharia, especialmente com o incrível desenvolvimento tecnológico que temos assistido nas últimas décadas.
Qual acha ser ou qual deveria ser o papel da Ordem do Engenheiros na vida profissional dos Engenheiros?
Deve funcionar como uma boa estrutura de suporte e lobby pelas diversas atividades de Engenharia, valorizando e destacando as grandes vitórias dos seus profissionais, promovendo e estimulando financiamento de iniciativa pública e privada para investimento na área e dando a conhecer as diversas ramificações que constituem a vasta área de Engenharia.
“Todas as atividades essenciais da nossa vida envolvem inúmeros conceitos de Engenharia.(…) Os desafios dos Engenheiros neste século são alimentação, diagnóstico, transportes, energias renováveis e o ambiente.”
Quais os maiores desafios dos engenheiros neste século?
Destaco as seguintes áreas críticas: alimentação, diagnóstico, transportes, energias renováveis e ambiente. Todas estas áreas vão ao encontro dos problemas ambientais que já vivemos hoje em dia e que vão piorar nas próximas décadas. Alguns exemplos passam por uma alteração globalizada das fontes de energia, desenvolvimento de estratégias mais eficientes de reciclagem e reutilização de detritos, desenvolvimento de uma rede de transportes mais rápida e com menor pegada ambiental, métodos de diagnóstico mais sensíveis e miniaturizados para identificação de doenças atempadamente e desenvolvimento de novas técnicas de produção alimentar mais eficientes e que possam ir de encontro à crescente densidade populacional.
“Temos vários engenheiros que o são sem ter grande noção disso! E esse é um dos maiores segredos da engenharia, a sua omnipresença de modo subtil e discreto.”
Nomeie um engenheiro do Norte que esteja a desenvolver um trabalho que aprecia, dentro ou fora de Portugal.
O engenheiro Rui L. Reis é um acérrimo defensor do Norte de Portugal e tem um percurso notável na criação de um centro de investigação de renome internacional no eixo Braga-Guimarães, dedicado à medicina regenerativa.
“Todo o nosso conforto de hoje foi obtido
através do trabalho de milhões de engenheiros.”
Há Engenharia em tudo o que há? Explique.
Sem dúvida, todo o nosso conforto de hoje foi obtido através do trabalho de milhões de engenheiros. Na verdade, para além dos engenheiros de formação, temos vários engenheiros que o são sem ter grande noção disso! E esse é um dos maiores segredos da engenharia, a sua omnipresença de modo subtil e discreto.
Sobre Vítor Espírito Santo
Formado Universidade do Minho em 2007, fez parte do primeiro leque de estudantes de Engenharia Biomédica nesta Universidade. Após completar o mestrado integrado, optou por continuar na área de investigação. Doutorou-se na Universidade do Minho, mais especificamente no grupo de investigação 3B’s. Dedicou-se à investigação de estratégias de Engenharia de tecidos e medicina regenerativa para reparação de tecidos ósseos e de cartilagem. Após o doutoramento e um breve período de pos-doc no mesmo grupo de investigação, transferiu-se para Oeiras, para trabalhar no Instituto de Biologia Experimental e Tecnológica (iBET), mais especificamente no grupo de modelos celulares avançados. O seu principal foco foi o desenvolvimento de modelos celulares tridimensionais oncológicos para avaliação da eficácia terapêutica de tratamentos cancerígenos. Em 2017, prosseguiu o seu trabalho na área oncológica, tendo trabalhado por um breve período de tempo na empresa Immunocore em Oxford, dedicada à descoberta de imunoterapias para cancro e outras doenças infeciosas. Finalmente, no início de 2018 optou por uma mudança profissional mais radical e fez uma transição para a indústria de biotecnologia alimentar, mais especificamente para a produção de carne cultivada.