Se dúvidas houvesse quanto à importância da Engenharia na persecução das novas formas de combater a pandemia, nomeadamente no que diz respeito às vacinas, hoje apresentamos Irina Ramos, licenciada e doutorada em Engenharia Química e Bioquímica, uma das caras da investigação da vacina contra a Covid-19, da AstraZeneca, nos Estados Unidos.
Formou-se na FEUP e, em 2004, partiu para os Estados Unidos para tirar o doutoramento na área da Engenharia Bioquímica. Hoje trabalha na AstraZeneca e desde abril que está envolvida no projeto da vacina para a Covid-19. Nesta entrevista Irina Ramos deixa claro que a formação em Engenharia em Portugal “é equiparada às melhores escolas do mundo”, e lembra o papel fundamental da Engenharia no combate à pandemia. “Engenheiros químicos são fundamentais para desenvolverem o processo da vacina contra a Covid-19”.
Conheça melhor Irina Ramos, numa entrevista profunda e obrigatória para todos os novos engenheiros em cujas mãos pode estar a resposta para os maiores desafios do mundo.
Para que todos os nossos engenheiros a possam conhecer melhor, conte-nos o seu percurso até chegar à AstraZeneca?
Formei-me na FEUP em Engenharia Química em 2004 e aceitei o convite de vir para os EUA tirar o doutoramento na área de Engenharia Bioquímica. Vim para a Universidade de Maryland, Baltimore County (UMBC), onde durante 5 anos desenvolvi a tese focada na agregação de proteínas que se tornam tóxicas para os neurónios, mecanismo relacionado com a doença de Alzheimer. A experiência foi muito enriquecedora pessoalmente e academicamente. A UMBC é culturalmente muito diversa e permitiu-me a exposição a línguas e costumes dos quatro cantos do mundo, este facto foi fundamental para a minha integração numa sociedade culturalmente díspar e profissionalmente tão exigente.
E pouco tempo demorou até chegar à AstraZeneca…
Com a formação da UMBC na área da Biotecnologia, comecei a trabalhar na AstraZeneca em 2009 como engenheira de processos de purificação de biofármacos. Nos 10 anos que se seguiram evolui na minha área aprendendo a desenvolver processos para este tipo de medicamentos desde a fase inicial clínica (que permite serem usados em ensaios clínicos) até à fase comercial (que permite serem aprovados para venda). Recentemente, com a atribuição da liderança de um grupo, sou responsável por desenvolver a plataforma de processo de biofármacos em sistemas de produção contínua (“next generation manufacturing”), inovação recente da área de biofármacos, e sou membro de consórcios internacionais nesta área de inovação. Leciono uma disciplina de Mestrado há 4 anos na mesma área de trabalho que permite trazer à Academia o ângulo de trabalho industrial necessário para formar novos profissionais.
“Em abril do ano passado fui envolvida no projeto da vacina da AstraZeneca para a COVID-19.
É perante esta pandemia devastadora, que equipas enormes de cientistas e engenheiros trabalham
há meses para permitir que este medicamento seja provado eficaz.”
Há poucos meses, a maioria de nós não conhecia a AstraZeneca, mas com o novo contexto mundial tudo mudou. Quais as suas funções e responsabilidades nesta empresa?
O meu trabalho na AstraZeneca é muito gratificante. Faço parte de um grupo global que se foca no processo de manufatura de biofármacos, que são medicamentos de fonte biológica (anticorpos monoclonais, vacinas…) utilizados em áreas como a Oncologia, Cardiovasculares, Inflamação respiratória e muitas mais. A minha função foca-se no processo de purificação após a produção do biorreator. Os processos são complexos e têm que ser rigorosamente controlados para provar a robustez e qualidade do produto. Todos os dados são partilhados com as entidades reguladoras para que seja aprovado na cura ou tratamento de uma doença. As minhas responsabilidades incluem dois pilares importantes: (1) gerir os recursos para cumprir a timeline dos projetos e (2) provar com dados científicos a validade e integração de várias unidades de operação que permitem a pureza, qualidade e robustez do processo às entidades reguladoras. Com a ciência em contínua inovação, é da minha responsabilidade estar atualizada da inovação e criar oportunidade para melhorar a eficiência dos processos; algo que no passado ano se intensificou com a necessidade de criar soluções de processo contínuo para projetos que necessitam de elevada produtividade. A parte que mais gosto da minha função é que nunca é aborrecida e que tenho que trabalhar com muitas equipas, internas e externas da minha área de trabalho.
Qual o projeto em que está agora envolvida e de que forma pode impactar com a vida das pessoas?
Ao trabalhar na inovação da plataforma de processos de biofármacos em modo contínuo, estamos a permitir que projetos que precisam de grande eficiência e produtividade se tornem comercialmente viáveis. Isto tem impacto direto na vida de pessoas que sofrem de doenças que estes produtos têm potencial de tratar ou curar. Em abril do ano passado fui envolvida no projeto da vacina da AstraZeneca para a COVID-19. A minha experiência passada no desenvolvimento e transferência de tecnologias de processo para manufatura e comercialização de biofármacos tem-me permitido ajudar um grupo global neste projeto tão importante como simbólico nas vidas de todos nós. É perante esta pandemia devastadora, quer a nível de saúde quer a nível social e económico, que equipas enormes de cientistas e engenheiros, pelo mundo todo, trabalham há meses para permitir que este medicamento seja provado eficaz e seja produzido em escala global para chegar aos quatros cantos do mundo. É um privilégio poder ajudar neste projeto, aprender com esta oportunidade e ultrapassar desafios todos os dias por termos que trabalhar na sombra da pandemia.
“O desafio, associado a projetos de elevado escrutínio pela comunicação social
e impacto em crises de saúde pública, é conseguirmos explicar o nosso trabalho incluindo
a ética e os valores que nos regem”
A AstraZeneca tem estado na boca do mundo. Como vê este novo desafio na ótica da Engenharia Química?
Engenheiros químicos e bioquímicos são fundamentais para desenvolverem o processo de biorreatores (onde as células produzem o biofármaco), o processo de purificação (onde isolamos o biofármaco de todos os outros componentes e impurezas que estão no biorreator) e o processo de formulação de produto (que permite a estabilidade do biofármaco durante armazenamento e transporte). O desafio associado a projetos de elevado escrutínio pela comunicação social e impacto em crises de saúde pública, é conseguirmos explicar o nosso trabalho incluindo a ética e os valores que nos regem para assegurarmos que a qualidade do processo e do produto são a prioridade.
“A Engenharia está presente em todas as áreas que permitem o combate à COVID-19.”
Qual acha ser o papel da Engenharia e dos engenheiros no combate à Covid-19?
A engenharia está presente em todas as áreas que permitem o combate à COVID-19. Desde a engenharia genética que nos permite decodificar a informação genética do vírus e criar a fórmula que permite informar as células como produzir a vacina, aos engenheiros (como eu) que trabalham no processo de manufatura, os engenheiros que fazem parte de equipas responsáveis pelos cenários de custos e pelas matérias primas, aos que planeiam o fornecimento global e aos que são gestores de projetos. A engenharia é aplicada desde o impacto micro ao macro.
Uma mulher, engenheira e estrangeira pode ser desafiante nos Estados Unidos. Como foi a sua integração na empresa?
No início da minha carreira na empresa beneficiei de sermos muitos membros do grupo contratados ao mesmo tempo. Esta onda saudável de colegas só trouxe competitividade saudável e aprendi muito. Ser mulher não fez diferença. As oportunidades foram surgindo e quem corre por gosto normalmente é beneficiado com mais oportunidades. Eu agarrei as minhas e permitiu-me exposição na organização, onde consegui criar a minha rede de contactos internos e externos. Isto é algo fundamental para percebermos a indústria e onde queremos levar a nossa carreira. Com a oportunidade de gerir um grupo de cientistas e de fazer parte de grupos mais sénior, verifico que há menos mulheres nas discussões. O mundo da Engenharia ainda é muito mais dominado por homens. Claramente que as equipas com mais diversidade são as mais energéticas, com mais ideias inovadoras, é onde os grupos se sentem mais representados. Eu tenho sorte de trabalhar numa empresa que fomenta essa diversidade. Sei também que a minha experiência a trabalhar na costa nordeste dos Estados Unidos não é representadora do país. O que é bastante penalizador para as mulheres neste país, são os benefícios associados à maternidade. Podem ser inexistentes nalguns sítios do país. No meu caso, beneficiei de 3 meses de licença e senti pouco o impacto de ter estado fora e a atribuição de projetos é respetivas oportunidades.
“Ser engenheira fora de Portugal é por si um desafio porque gostaria de poder
trabalhar em algo semelhante e viver no meu país”
Compensa estar longe da família? Vale a pena?
Não há nada que substitua a família e os amigos. Nem a sociedade e a cultura em que crescemos. Identificamos um português à distância pela forma calorosa que nos caracteriza. Estarmos a viver fora do nosso país permite-nos identificar as características que nos tornam únicos quando misturados com as inúmeras nacionalidades do mundo. Eu tenho muito orgulho em ser portuguesa e muito orgulho dos portugueses que tenho conhecido por cá. Alguns serão amigos para sempre. Quando me pergunta “se compensa” a resposta não é simples. As circunstâncias que me trouxeram aqui foram diversas e foram-se renovando em alturas distintas. O meu plano em 2004 era bem diferente, e em 2020 ainda cá estou. A avaliação das minhas opções faz-se no presente e até agora sinto-me muito realizada com a minha profissão e as oportunidades paralelas; pessoalmente, com os meus filhos e marido, criei ligações e condições para viver com equilíbrio as relações de amizade de cá e sentir que tenho algum apoio. As viagens a Portugal (que em 2020 não foram possíveis) permitem recarregar emocionalmente as energias. Benditas as tecnologias que nos fazem sentir mais perto.
O que é para si mais desafiante e mais compensador enquanto engenheira que trabalha fora do país?
Ser engenheira fora de Portugal é por si um desafio porque gostaria de poder trabalhar em algo semelhante e viver no meu país. O desafio reside em determinar a forma como a minha formação pode ser útil e se aplicar no mercado nacional. É extremamente compensador trabalhar com equipas empenhadas e muito capazes, com recursos que nos permitem desenvolver e aplicar a ciência para melhoria da qualidade de vida das pessoas. Na minha empresa há uma relação direta entre esforço e eficiência do nosso trabalho e recompensa. Mede-se o impacto com rapidez e recompensam-se os colaboradores.
A Engenharia continua a ser uma profissão de homens?
Sim. É cada vez mais equilibrada por mulheres que combinaram o seu potencial da matemática, física e química com a biologia e capacidade de planeamento, coordenação e gestão de pessoas e projetos. As equipas com pessoas diversas são sempre mais eficazes. Penso que a área da engenharia química é mais equilibrada que a mecânica, civil ou informação tecnológica e computacional, mas é comum que lugares de liderança empresarial ainda sejam ocupados na maioria por homens.
Trabalhar nos Estados Unidos, é seguramente muito diferente de trabalhar em Portugal. Quais as grandes diferenças que encontra?
Pelo que me apercebo, a progressão de carreira e os benefícios salariais são muito diferentes. Aqui as oportunidades existem com mais facilidade porque há mais oferta e as pessoas estão dispostas a deslocarem-se geograficamente. Os benefícios monetários são significativamente superiores na Indústria Farmacêutica internacional do que em Portugal. A integração na comunidade científica foi-me facilitada devido a ter-me sido apresentada enquanto estudante e me ter permitido tempo para criar a minha rede de contactos e aprender a interagir com culturas diferentes. Por último, o ritmo de trabalho e as expectativas de resultados é muito superior nos EUA do que em quase qualquer outro lado do mundo.
“A formação em Engenharia que eu tive na FEUP é equiparada às melhores escolas do mundo.”
Como vê a Engenharia que se faz em Portugal, na sua área em concreto. Consegue identificar o melhor e o pior?
A formação em engenharia que eu tive na FEUP é equiparada às melhores escolas do mundo. Apesar da indústria biofarmacêutica não ser grande em Portugal, temos infraestruturas interessantes que poderão crescer ainda mais recorrendo às novas gerações de formandos de qualidade na área da biotecnologia. Penso que as limitações estão ao nível do investimento industrial na área e apostas importantes de investidores ou mesmo do Governo para colocar Portugal numa posição mais independente de parceiros europeus que materializam essas apostas, e para onde muitos portugueses emigram.
“A capacidade técnica complementada com a experiência dá origem a líderes na indústria.
(…) Um engenheiro forte tecnicamente é colocado a gerir projetos e ideias”
Algum/a engenheiro/a que esteja a ler esta entrevista e que pense em trabalhar na mesma área, quais as skills que acha fundamentais terem?
A aposta num curso de Engenharia amplo é ganha à partida dada a variedade de saídas profissionais que permite. Uma vez que eu não sabia o que queria fazer com o meu curso quando o iniciei, penso que a minha formação ampla completou-se bem com o foco em Biotecnologia que o doutoramento me permitiu. O que aprendemos nos cursos é materializado com a experiência na indústria. A capacidade técnica complementada com a experiência dá origem a líderes na indústria. O meu conselho para boa integração na indústria, é (1) focar nos skills relacionados com comunicação de ideias para audiências diversas, (2) aprender a trabalhar com ambiguidade e saber atribuir a prioridade necessária a tarefas, (3) gerir recursos e focar-se na capacidade de organização e gestão de projetos. Mesmo que a ambição não seja liderar grandes equipas, um engenheiro forte tecnicamente é colocado a gerir projetos e ideias, inovação é recursos, e muitas vezes é colocado a área comercial para explicar e vender o produto.
“A atual crise tem-nos mostrado como mesmo sociedades com meios financeiros
e com recursos humanos, têm tido dificuldade em colocar em prática
um plano de distribuição da vacina”
Tendo em conta a atual crise decorrente da pandemia por covid-19, quais as oportunidades que os engenheiros devem aproveitar? Onde estão as oportunidades, na sua opinião?
A atual crise tem-nos mostrado como mesmo sociedades com meios financeiros e com recursos humanos, têm tido dificuldade em colocar em prática um plano de distribuição da vacina, ou de coordenação de infraestruturas, ou de comunicação de assuntos complexos como ciência inovadora e o seu impacto na vida das pessoas. Penso que engenheiros com formação em logística, conhecimentos de gestão de custos, capacidade de organização aliada à oportunidade de criar planos práticos, são os profissionais por excelência para melhorarem a forma como se trabalha e interage. Penso que precisamos de ver saídas profissionais tangentes às aplicações técnicas e perceber que ter uma formação diversa adicionada à base fundamental que estudamos, produz profissionais mais competentes. Perceber o que outras funções fazem, faz com que façamos a nossa melhor.
Recomenda uma experiência internacional? Porquê?
Sem dúvida que sim. Abrir horizontes na mentalidade, nos recursos usados para desenvolver e aplicar a ciência e criar empatia pelos outros, são todos fatores fundamentais para aprendermos a trabalhar em equipas de base científica. Neste mundo global, essas equipas são também globais e diversas.
“Ser membro da Portuguese American Post-Graduate Society (PAPS)
permitiu-me conhecer muitos portugueses nos EUA.”
Que tipo de engenheiros trabalham consigo, há mais portugueses? Em que áreas?
Tenho tido o privilégio de conhecer portugueses de todos os cantos do nosso país a trabalhar cá. Alguns mais relacionados com a academia, outros na indústria. Bastantes são estudantes de doutoramento ou pós-doutorados com projetos a termo, e outros já estão integrados na sociedade americana. Ser membro da Portuguese American Post-Graduate Society (PAPS) permitiu-me conhecer muitos portugueses nos EUA. As áreas da engenharia a que pertencem são na área da biotecnologia (química, bioquímica e biologia, biomecânica). Na minha empresa somos pelo menos quatro, duas somos do norte do país.
“Para os que pretendem, como eu, vir para cá tirar o doutoramento,
a nossa preparação é muito boa e de uma forma geral
os alunos portugueses tiram boas notas.”
É respeitada e valorizada a formação portuguesa em Engenharia nos Estados Unidos?
O meu curso de Engenharia foi de 5 anos (Pré-Bolonha) e quando cheguei à UMBC foi muito claro que a minha formação era muito competitiva com a de outros engenheiros formados na Inglaterra, Alemanha, Austrália, Canadá e mesmo China e Índia. A licenciatura aqui nos EUA era de 3-4 anos e não é composta só de disciplinas de Engenharia, fazendo com que os alunos tenham menos cadeiras do que nós temos em Portugal. Para os que pretendem, como eu, vir para cá tirar o doutoramento, a nossa preparação é muito boa e de uma forma geral os alunos portugueses tiram boas notas.
Há Engenharia em tudo o que há? Explique.
Sim, há engenharia em tudo o que nos rodeia e nos permite viver numa sociedade industrializada com os benefícios do progresso. Recentemente é de realçar a engenharia associada à sustentabilidade que permite a recuperação e a reutilização de matérias primas e melhor utilização de recursos naturais para gerar energia – o desenvolvimento de energias verdes (“green energy”).