O ciclo de conferências “Há Engenharia fora da caixa” tem trazido visões, pensamentos e questões tão diferentes como surpreendentes. Desta vez coube a Fátima Vieira, vice reitora da Universidade do Porto, guiar a Engenharia pelo pensamento utópico, e surpreender-nos com este pensamento que nos leva a colocar perguntas e a imaginar o futuro. “Os engenheiros são os utópicos ideais”, revelou, descubra porquê.
Joaquim Poças Martins abriu a conferência lembrando que Fátima Vieira iria apresentar “uma perspetiva diferente, que nos vai ajudar, uma vez mais, a perceber melhor o momento que estamos a atravessar e que como não Engenheira terá novas coisas a dizer.” Já Raul Vidal, membro do Conselho Diretivo da OERN e moderador desta conferência partilhou que Fátima Vieira “tem exercido funções tanto na vertente de ensino quer em vários projetos nesta área da utopia. É reconhecida na área da utopia na comunidade internacional, tendo já sido presidente da Utopian Studies Society / Europe.”
O que Fátima Vieira disse…
Sobre isso da Utopia
O “Há Engenharia fora da caixa” é uma iniciativa utópica. Eu estudo utopia há mais de 30 anos e a pergunta que mais me fizeram ao longo destes anos foi sempre “para que serve a utopia”, isto porque a maior parte das pessoas tem a ideia da utopia como a entrada do dicionário “sonho impossível, o ideal, algo que é irrealizável”.
“A utopia é algo que nós colocamos no nosso horizonte”
Confesso que durante muitos anos me senti sempre um bocadinho atrapalhada com esta pergunta, até que um dia encontrei na internet um videoclip onde Eduardo Galeano explica para que serve a utopia, e, aí ele explica que um dia estava numa universidade a fazer uma conferência e a certa altura um estudante terá feito a mesma pergunta e a resposta dada foi que “a utopia é algo que nós colocamos no nosso horizonte”, ou seja, nós damos dez passos e a utopia avança dez passos e assim sucessivamente, portanto a utopia serve para nos fazer caminhar, se não tivéssemos esse sonho, ficaríamos sempre no mesmo sítio. A utopia é motor de desenvolvimento. Mas quando falamos de utopia como metodologia, como ferramenta essencial para o desenvolvimento da sociedade estou também a falar da utopia tendo consciência que é uma ideia, um conceito que se encontra inscrito na matriz do pensamento ocidental dos últimos cinco séculos.
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Sobre a pandemia e se o futuro vai criar uma nova utopia
Tenho ouvido algumas pessoas a dizer que o mundo talvez não mude, mas as pessoas irão mudar, aliás o Papa Francisco também já disse que as pessoas irão sair desta crise melhores ou piores pessoas, caberá a elas decidirem. Eu estou convencida que vai haver uma mudança e os filósofos, que têm aliados de tantas outras disciplinas, têm falado das “utopias das cidades”.
“Esta pandemia pode muito bem inverter a lógica urbana (…)
poderá revitalizar a ideia das cidades jardim.”
Aquilo que se tem dito é que esta pandemia pode muito bem inverter a lógica urbana de alta densidade e poderá valorizar os espaços verdes, poderá revitalizar a ideia das “cidades jardim”. Ou as pessoas se mudam mais para as zonas mais rurais ou então as cidades terão pequenas aldeias dentro. Também é interessante perceber que o que está a acontecer neste momento é uma utopia. Há uns anos fazia parte de um grupo de trabalho que estuda a hipótese de haver um rendimento básico para todos e, na altura, toda a gente dizia que isso seria impossível, que ninguém na Europa o iria aceitar. O certo é que hoje, com a Covid, esta ideia tem vindo a ganhar força. Em relação ao futuro, e segundo Boaventura de Sousa Santos, nós iremos agora viver num período de transição onde irá coexistir o novo com o velho, iremos num futuro muito próximo ter uma economia mista onde teremos uma coexistência da economia de mercado com novos modelos assentes nos princípios de partilha, de solidariedade.
Sobre a visão utópica da universidade
Uma universidade onde o conhecimento seja sobretudo um instrumento de liberdade. Ou seja, uma universidade que não transmita apenas conhecimento, mas sim que o promova. Um conhecimento pertinente, contextualizado, que vá para lá da contextualização e que interligue todos os pontos. Uma universidade que promova a cidadania, que não forma apenas engenheiros, mas que forme pessoas preparadas para resolverem problemas da sua área profissional. Uma universidade onde questões transversais sejam promovidas, como a inclusão, questões de género, cultura, hospitalidade, ou seja, temas estruturantes.
Sobre a Engenharia e a relação com a Utopia
Eu penso que a utopia é muito relevante para a Engenharia e para todas as ordens profissionais. Eu acho que os engenheiros são os utópicos ideais, porque os engenheiros são os mais treinados pela própria formação a trabalhar multidisplinarmente e colaborativamente. O que é que eu quero dizer com isto? Fala-se muito da necessidade de interdisciplinaridade, multidisciplinaridade, da transdisciplinaridade. Os engenheiros são muldisciplinares por natureza.
“Os engenheiros são os utópicos ideais, porque são os mais treinados, pela própria formação, a trabalhar multidisplinarmente e colaborativamente.”
Eu só percebi o que isto era quando uma vez li um documento que foi publicado pelo MIT onde explicava o que era a multidisciplinaridade. Esse documento diz que o exemplo de um trabalho multidisciplinar é aquele que é feito, por exemplo, por um engenheiro e por um arquiteto, que trabalham juntos para construir uma casa, em que o engenheiro não quer ser arquiteto, e o arquiteto não quer ser engenheiro. Isso é que é fundamental, cada um contribui com o seu trabalho.
“A utopia é sempre um projeto,
e os engenheiros estão habituados a trabalhar em projetos.”
A utopia é sempre um projeto, e os engenheiros estão habituados a trabalhar em projetos. Depois, há ainda também, a própria formação em Engenharia que, por aquilo que me tem sido dado a ver ao longo dos tempos, é uma formação que é cada vez menos especializada. A forma como o pensamento crítico está sempre incorporado na própria informação de Engenharia. E ainda recentemente, vendo as próprias propostas que estão a ser feitas para a formação em Engenharia, nós vemos também que há uma grande preocupação na formação em competências transversais e são estas que são importantes, também, para o pensamento utópico.
“Vendo as propostas de formação em Engenharia,
vemos que há uma grande preocupação em competências transversais
e são estas que são importantes.”
Eu acho que para os engenheiros, a utopia é importante porque há utopias que são facilmente realizáveis, que são as utopias tecnológicas, as utopias sociais, essas são difíceis de realizar, mas as utopias tecnológicas acabam mesmo por ser realizadas, basta pensarmos no Júlio Verne e todas as suas utopias tecnológicas, que todas elas são uma realidade.
Mas as utopias tecnológicas, têm implicações sociais. É isso que nós precisamos, de engenheiros que pensem utopicamente. Antes de se inventar o que quer que seja, porque a invenção tem a ver com um projeto de investigação, é importante que haja uma discussão, e que sejam aplicados os tais tipos de pensamentos, modos de pensar utópicos. Temos de pensar prospetivamente, o que é que eu quero? Depois temos que pensar criticamente, será que esta é a melhor solução? Temos que pensar holisticamente, como é que eu vou conseguir este resultado? E depois temos que pensar criativamente, ou seja, a própria solução tem de ser uma solução inovadora.
“Os engenheiros, e as próprias instituições de formação em Engenharia,
têm vindo a semear o mundo de viveiros de utopias”
Eu acho que os engenheiros, e as próprias instituições de formação em Engenharia, têm vindo a semear o mundo de viveiros de utopias. A instituição que conheço melhor é, naturalmente, a Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto. Nós temos, também, estes viveiros da utopia de forma muito clara na Engenharia. Portanto, o que é que existe na utopia para Engenharia? Eu diria esta forma de pensar utópica, esta forma de pensar crítica. Portanto, a Engenharia é por si só uma utopia, podemos dizer que é um instrumento para a utopia, se estivermos a pensar nas utopias tecnológicas, que poderão ser vistas como um instrumento de libertação, eu acho, de muito trabalho.
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Edição e texto: Catarina Soutinho | Transcrição: Sofia Vieira e Inês Miranda | Design Gráfico: Melissa Costa